Mais uma Mobile World Congress carente de novidades impactantes veio e se foi em Barcelona. Nem mesmo a Samsung, uma das grandes vedetes do evento anual, se animou a revelar sua próxima arma secreta, o Galaxy S8, que, no fundo, também não traz nada de novo ao cenário.
Mais uma Mobile World Congress veio e se foi em Barcelona sem o sonho dos smartphones modulares se tornando realidade (embora a LG tenha tentado no ano passado). Ninguém nem mesmo se pergunta que fim levou o Projeto Ara, do Google.
Mas, afinal, que fim levou o Projeto Ara?
No início, era o Phonebloks. Mais ou menos.
Em 10 de Setembro de 2013, um designer industrial chamado Dave Hakkens subiu para o YouTube um projeto conceitual de graduação de curso: era um smartphone modular batizado de Phonebloks, que permitiria aos usuários trocar e evoluir seus componentes de forma independente, sem nunca precisar descartar o todo. Em suas palavras, era “um telefone que valia a pena guardar”, um claro contraponto à tendência dos usuários de trocarem de aparelho anualmente a cada lançamento de um novo modelo ou um defeito mínimo no anterior.
“Eu tinha uma velha câmera que quebrei e eu não podia realmente consertá-la. Então, eu a desmontei e percebi que todos os componentes ainda estavam muito bons, exceto por uma coisa. Eu pensei: não é estranho que nós jogamos tudo fora por que uma parte está quebrada?”, explicou mais tarde Hakkens.
O vídeo explodiu ao tocar justamente nessa questão que perturbava os consumidores havia muito tempo e para a qual ainda não havia resposta. Mas os engenheiros e desenvolvedores de hardware insistiram em afirmar que o conceito era inviável, que não era assim que um smartphone era produzido. O Phonebloks parecia um sonho que nunca iria se concretizar.
Exceto que Hakkens havia esbarrado, sem saber, em um projeto que já estava sendo incubado em segredo havia quase um ano nos porões da ATAP, o laboratório experimental da Motorola. O Phonebloks havia aguçado o interesse do público e mostrado que havia um enorme potencial por trás da ideia. A ATAP não teve outra alternativa a não ser chamar Hakkens para conversar: pagaram passagem e hospedagem para o designer holandês e mostraram a ele o Ara.
Mas bem antes, veio um food truck…
Dan Makoski se juntou à Motorola e à ATAP pouco depois de ela ter sido comprada pelo Google e ocupou a posição de designer de projeto do que viria a ser conhecido como Ara. Era um momento em que smartphones eram construídos com a mentalidade de serem os dispositivos “perfeitos” e invioláveis replicados milhões de vezes para todos os consumidores. Pelo menos até a tecnologia evoluir mais um passo e ser criado um novo aparelho “perfeito” e inviolável que iria substituir por completo o anterior.
Makoski queria ir na contramão: oferecer um smartphone customizado para as necessidades de cada usuário e que não fosse descartável, mas evoluísse nas mãos do consumidor.
Na época, tudo era novo na Motorola: a nova sede em Sunnyvale, na California, nem mesmo tinha cafeterias construídas, e uma legião de food trucks migrou para o estacionamento para oferecer comida aos funcionários. Foi em um desses almoços que Regina Dugan, ex-DARPA e diretora da ATAP, teve a epifania que faltava para o projeto de Makoski: o food truck seria a base da construção do novo modelo de fabricação de smartphones.
Makoski estava presente nesse dia, em um dos inúmeros almoços que dividia com Dugan e lembra da executiva falando: “assim como você customiza sua comida bem aqui, nós deveríamos colocar impressoras 3D e eletrônicos hackable em um furgão, e é assim que nós vamos fazer essa ideia”.
“E eu pensei que ela estava insana. Mas, quer saber, eu pensei sobre isso um pouco mais e isso foi o começo. Era tudo sobre como criar componentes eletrônicos que fossem maleáveis e adaptativos e pessoais, e onde cada um fosse diferente”.
Reforços chegando e um furgão hippie cruzando o país
Mas, no fundo, Makoski não tinha muita confiança de que o projeto pudesse sair do chão. Dugan deu a ele carta branca para contratar quem quisesse e assumir a liderança da equipe, mas ele preferiu abrir mão do papel. Foi quando Dugan chamou um nome que se tornaria a principal mola propulsora que quase tornou o Ara um produto de verdade: Paul Eremenko. Juntos, Eremenko e Makoski arregaçaram as mangas para que tudo desse certo, embora esse admita que era aquele quem ficava com os olhos vermelhos sem dormir e foi o foco de Eremenko que estabeleceu prazos, metas e uma latente ambição de conquistar o mundo com o smartphone modular.
Makoski e outros engenheiros literalmente construíram o furgão de produção imaginado lá atrás e percorreram mais de 20 mil quilômetros de estradas nos Estados Unidos durante meses fazendo testes e demonstrações de dispositivos eletrônicos que podiam ser customizados ao gosto do freguês. Quem viu ficou eufórico com as possibilidades que saíam daquela fábrica sobre rodas.
Entretanto, nos escritórios da Motorola, Eremenko percebia que o entusiasmo com o que o ATAP estava fazendo era bem menor e o projeto corria um sério risco de ser engavetado.
Foi nesse momento crucial que Hakkens soltou seu vídeo no YouTube e, de uma hora para outra, o mundo inteiro queria colocar as mãos em um smartphone modular. O discurso no alto escalão da Motorola mudou da água para o vinho quando se percebeu que aquilo que estava viralizando já estava sendo estudado debaixo do teto da empresa e havia acabado de circular pelo pais.
Eremenko convocou Hakkens para a equipe, mas ele se recusou a se juntar ao projeto, alegando que isso iria afetar sua independência. O designer holandês queria promover o conceito dos dispositivos modulares customizáveis, mas não queria ficar preso a um produto de uma empresa. Mas acabaria se oferecendo para funcionar como um porta-voz do Ara: iria cobrir a fundo os bastidores de seu desenvolvimento, o que levou muita gente a acreditar que o Phonebloks era o Ara e vice-versa, ironicamente enterrando suas chances de evoluir o Phonebloks e conseguir investidores.
Então, o mundo ficou chocado!
Com a ajuda de Hakkens, a Motorola veio a público 48 dias depois mostrando ao mundo que o conceito que o holandês havia apresentando era um produto real e estava em produção. Era 28 de Outubro de 2013. Se o vídeo do Phonebloks foi uma explosão na internet, o anúncio do Ara foi uma ogiva nuclear caindo sobre a cabeça dos entusiastas.
“Nosso objetivo é direcionar um relacionamento mais elaborado, expressivo e aberto entre usuários, desenvolvedores e seus telefones”, escreveu Eremenko no blog da Motorola. Segundo o líder do projeto, o Ara iria “dar a você o poder de decidir o que o seu telefone faz, como ele se parece, do que ele é feito e em qual partes, quanto irá custar e por quanto tempo você irá mantê-lo”.
A euforia tomou conta de todos e, mesmo quando o Google passou a Motorola pra frente, vendendo-a para a Lenovo, fez questão de manter sob sua tutela direta o ATAP, toda sua equipe e o projeto Ara. O smartphone modular se tornaria mais um dos projetos de hardware ousados demais para sua época, como o Google Glass, mas os ventos do otimismo sopravam forte e os olhos do mundo se voltavam para o futuro da iniciativa.
Entretanto, estava tudo indo rápido demais… inclusive as lideranças.
Eremenko era o mais empolgado de todos. Segundo ele, a ATAP estava pronta para lançar um kit de desenvolvimento de módulos (MDK) para os fabricantes de hardware no início de 2014 e que o smartphone já estaria pronto para ser comercializado no primeiro trimestre de 2015. Ele imaginava que o Ara iria fazer “pelo hardware o que a plataforma Android fez pelo software”. E tudo isso por um preço base de US$50, um valor que muitos julgam impossível na indústria. Mas não Eremenko: ele via o aparelho vendendo como água em países em desenvolvimento e em países mais industrializados, com módulos progressivamente mais caros.
E, até certo, tudo indicava que os planos e prazos de Eremenko iriam se concretizar: em Abril de 2014, o MDK já estava pronto e nas mãos de diversos desenvolvedores.
Nesse ponto, Makoski, um dos pais do projeto, saiu da ATAP. Por uma regra rígida herdada da agilidade da DARPA, cada funcionário só poderia permanecer na empresa por um prazo máximo de dois anos e o prazo de Makoski havia terminado. Eremenko ainda teria 13 meses pela frente, mas teria que colocar o Ara na mão dos usuários sem o apoio do seu parceiro.
Mas ninguém além do próprio Eremenko acreditava que isso seria possível. Nem mesmo Hakkens, o criador do Phonebloks, que ouvira tantas vezes que seu conceito era inviável e ainda assim persistira, confiara na estimativa do líder do Ara. Hakkens imaginara que um smartphone modular não seria viável em menos de dez anos. O Google, aliás, Eremenko, queria fazer em dois anos.
E a realidade se meteu no caminho de seus planos: regulamentos, interoperabilidade entre diferentes fabricantes, acordos de uso, entraves burocráticos que ninguém havia previsto, tudo isso levou para uma sucessão de atrasos dos testes do Ara que viraram notícia nos sites de tecnologia, enquanto a euforia esfriava e a desconfiança tomava conta até mesmo dos consumidores. O relógio estava contando, de forma implacável: Junho de 2015 chegou, não havia um protótipo funcional do Ara e Eremenko se despedia da ATAP com o término do seu contrato.
Regina Dugan, que havia tirado boa parte do conceito de um furgão de food truck anos antes, assumiu diretamente a liderança do projeto, com o apoio do veterano de Motorola Rafa Camargo. O smartphone modular e popular de US$50 foi reimaginado como um produto de ponta de linha, com diversos componentes já pré-instalados e alguns adicionais que não passariam pelo crivo de nenhuma equipe séria de marketing, como um micro-aquário acoplável…
Protegida por Dugan, a ATAP conseguiu sobreviver à reestruturação do Google em Alphabet, apesar do interesse em desmantelar a divisão de hardware inteira e dar um novo foco aos esforços da empresa.
Mas, faltando apenas um mês para a nova data do Ara chegar à fase de testes, veio o golpe final: Dugan saiu do Google para comandar o Building 8 no Facebook, com centenas de funcionários e centenas de milhões de dólares para desenvolver projetos inovadores na plataforma. Não havia mais ninguém entre Ara e o machado do Google, não havia ninguém no comando, não havia mais entusiasmo.
O fim?
Em Setembro de 2016, abriu-se o alçapão embaixo do ATAP. Era o fim do Ara, sem muita cerimônia, a tecnologia seria licenciada para outras empresas, mas nunca haveria um produto modular com a grife do Google. Parte da equipe foi absorvida em outros projetos dentro da Alphabet, outra parte foi procurar abrigo com Regina Dugan no Building 8 do Facebook.
Dave Hakkens hoje em dia ainda acredita que o Phonebloks pode caminhar com suas próprias pernas, mas também possui outros projetos paralelos igualmente ousados, como uma plataforma de compartilhamento de histórias audiovisuais e um sistema de reciclagem de plástico.
Dan Makoski continua torcendo para que o Ara ressurja, de alguma forma, das cinzas. Atualmente é Vice-Presidente de Design do Walmart e comanda uma equipe de designers e especialistas em interface que pretende “mudar a forma como o mundo economiza dinheiro e vive melhor”.
Paul Eremenko deixou seu passado no ARA para trás e hoje é o CTO da Airbus e acredita que o desenvolvimento de Inteligência Artificial, principalmente em aeronaves não-tripuladas é algo que não deve ser temido.
Ara Knaian, um dos engenheiros que resolveu a questão da integração dos múltiplos componentes em um só smartphone e que deu seu nome para o projeto, continua trabalhando na mesma NK Labs que ajudou a fundar e que trabalhou como empresa terceirizada para a ATAP no início do Ara. Por muito pouco, seu nome não entrou para a História da indústria dos smartphones. Mas isso só o futuro, ou a próxima Mobile World Conference, poderá dizer com certeza.