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A história de Amazônia, o primeiro jogo brasileiro!

Você estava pilotando um avião e, devido a uma pane no motor, teve que fazer um pouso de emergência em plena selva amazônica. Você sobreviveu e agora precisa achar um meio de escapar das inúmeras armadilhas e surpresas que um passeio pela selva reserva a esses “afortunados”. Boa sorte, companheiro…

Assim começava a jornada do jogador por Amazônia, o primeiro jogo brasileiro, lançado em sua versão inicial em agosto de 1983. Nessas últimas três décadas, o adventure ambientado na selva amazônica continuou sendo aprimorado e disponível para jogadores em diferentes computadores. Sua importância para a história dos jogos eletrônicos no Brasil é inestimável e sua influência na indústria nacional tampouco pode ser medida.

Sua história começa antes disso, quando Renato Degiovani peregrinava pelas livrarias de Rio de Janeiro e São Paulo em busca de livros importados sobre linguagens de programação no início dos anos 80. Essa pesquisa o levou até um livro com programas compatíveis com o microcomputador Sinclair ZX81. Estava incluído ali o pequeno adventure City of Alzan, lançado em 1981.

É preciso entender que jogos para computador naquela época precisavam ser digitados. O jogador ao mesmo tempo montava e jogava a aventura, com o código embutido em revistas. Era uma forma de aprendizado e City of Alzan prendeu o interesse e a imaginação de Degiovani. No jogo em texto, o personagem principal estava perdido na cidade do título, um antro de ladrões e assassinos, e precisava encontrar uma forma de pular o muro que cercava o lugar. Era necessário explorar o lugar, com comandos que movimentariam o personagem para as quatro direções, encontrar itens e combiná-los na forma de uma solução.

City of Alzan era um jogo simples, feito em Basic, de acordo com os padrões da época, limitado pelos 16 KB de RAM disponíveis para as máquinas daquela geração. Ainda assim, de acordo com Degiovani, “foi paixão à primeira linha digitada”. Ele narra suas desventuras no jogo:

Joguei inúmeras vezes o City of Alzan sem conseguir sair da cidade (que era povoada por bandidos e ladrões). Naquela altura (e por ter digitado o jogo) eu sabia que seria necessário construir uma escada para saltar pelo muro, que cercava toda a cidade. Já tinha pregos e um martelo, mas não encontrava nenhum tipo de madeira. Havia um beco em cuja descrição havia menção “some wood” e na minha cabeça aquilo soava como “um punhado de terra num cantinho”. Demorou para a ficha cair.

A experiência com a limitação de memória do jogo e sua própria limitação com o vocabulário em outro idioma o levaram a tomar uma decisão: ele criaria seu próprio jogo, um título que extrapolasse aqueles limites técnicos e que fosse feito com cenários e situações brasileiras, usando nosso idioma.

Como ele mesmo lembra, a Amazônia era a escolha certa para essa investida: “na amazônia tinha selva, tinha índios, onças, cobras, vestígios de antigas civilizações, desmatamentos…”.

Aventura na Selva

Durante cerca de seis meses, Degiovani dedicou todas as suas horas vagas, madrugadas inteiras e finais de semana para desenvolver e polir o que viria a ser o precursor do primeiro jogo brasileiro. Enquanto criava, aprendia na prática os meandros de programação. Ele tinha 27 anos e um diploma de Desenho Industrial e Comunicação Visual pela PUC-Rio.

Assim, no final de 1982, estava pronto Aventuras na Selva, como o jogo foi batizado inicialmente. Os esforços de Degiovani foram além de apenas programar o adventure de texto: junto com o jogo, existia um manual impresso, um display e um produto empacotado pronto para ser produzido e vendido. Para muitos efeitos, ele estava na frente do seu tempo. O desenvolvedor inclusive imaginava distribuir o jogo em bancas de jornais, um mercado ainda não explorado no Brasil.

No início de 83 tanto o jogo quanto o modelo de produto que eu havia imaginado estavam prontos. Tinha chegado até onde imaginei que era minha obrigação, ou seja, ao ponto de dizer: aqui está o jogo como produto. Agora é preciso produzi-lo.

Entretanto, Degiovani esbarrou em um problema pelo qual muitos pioneiros já passaram antes: não havia uma editora disposta a investir no produto. Ele tinha tudo pronto, mas não tinha recursos para bancar a produção, não tinha acesso a um sistema de distribuição, não tinha uma produtora por trás, como acontece no cenário atual dos jogos eletrônicos.

O destino de Aventuras na Selva mudou ainda em 1983, quando ele recebeu a oferta de publicar o jogo completo na revista brasileira Micro Sistemas. O título nacional seria um dos grandes destaques da edição 23, que trazia os jogos adventure como destaque em sua capa de agosto.

Assim como City of Alzan, Aventuras na Selva era um jogo focado para os microcomputadores da linha Sinclair ZX 81, os mais populares daquele período. Por conta disso, ainda estava limitado pela memória de 16 KB e era uma aventura criada inteiramente em texto, sem imagens.

Para surpresa de Degiovani , a revista esgotou nas bancas e tornou-se um item de colecionador. O sucesso de Aventuras na Selva estimulou uma onda de produções nacionais similares e toda uma geração de criadores encontrou na Micro Sistemas uma janela para um mundo que se expandia. Sua influência seria sentida por anos:

Todos, autores e produtores, gravitavam ao redor da revista que não apenas podia divulgar as produções como servir de plataforma de publicidade para vendas (o que aliás aconteceu e fortaleceu o mercado produtor por quase 10 anos).

Amazônia

Publicar Aventuras na Selva era apenas o primeiro passo de uma jornada que ainda se estenderia por mais de duas décadas na vida de Renato Degiovani. Nos meses finais de 1985, ele já tinha a versão seguinte do jogo pronta, compatível com microcomputadores mais modernos e poderosos, como as linhas TRS 80 modelo III e ZX Spectrum, também da Sinclair.

Essa nova versão continha mais locais, descrições mais completas de cada cenário, novos perigos para o jogador. Não apenas era um título repaginado para máquinas mais potentes, como o próprio código original havia sido reescrito em Assembler, para maximizar a utilização de recursos.

Rebatizado como Amazônia, o nome definitivo para o adventure, Degiovani sabia desta vez que estava com um produto melhorado. Seu lançamento teve direito a anúncio em revistas de informática, embalagem especial e distribuição em pontos de vendas em lojas.

O lançamento foi feito em grande estilo, com publicidade em todas as revistas de informática da época, embalagem especialmente projetada para o jogo e pontos de venda nas principais lojas das grandes cidades.

O sucesso se repetiu e, no ano seguinte, saiu a versão do jogo para MSX. Os micros MSX se tornaram uma febre no Brasil e Amazônia rapidamente virou um fenômeno de vendas entre os jogos do gênero, quase uma unanimidade entre os “micreiros” brasileiros. Degiovani também foi o responsável ou colaborou em outros adventures nacionais no mercado, lançados depois do estouro do primeiro: Serra Pelada, Lenda da Gávea e Angra-I. Em comum, eles traziam temáticas próprias de nosso país e nossa língua, o que explicava sua popularidade.

Mapa geral da aventura com o posicionamento dos principais objetos e ligações N/S/L/O que foi usado na ampliação do Aventuras na Selva.

A jornada de Amazônia não parou por aí e o jogo seguiu acompanhando a rápida evolução dos microcomputadores:

  • Em 1990, saiu uma versão compatível com o PC, com suporte a placas CGA monocromáticas.
  • Em 1991, foi lançada a primeira versão gráfica do jogo, para PC/CGA.
  • Em 1993, a PRO KIT Informática criava a primeira versão colorida do jogo (16 cores), para computadores 386 com suporte a VGA.
  • Em 1995, foi introduzido o suporte a mouse no jogo: era possível jogar de forma tradicional, digitando frases e comandos, mas também era possível escolher ações em um menu interativo.
  • Em 1996, Amazônia ganhava suporte a placas SuperVGA e entrava na era de 256 cores. Essa versão foi lançada exclusivamente em CD-ROM e foi o primeiro jogo brasileiro distribuído nesse formato.
  • Em 1996, também chegaria a primeira versão do jogo para Windows, com suporte a Hi-Color e True-Color em computadores PC.

Entre 1997 e 2010, Amazônia passaria a fazer parte do acervo exclusivo do Club TILT, um serviço de assinaturas vinculado à revista digital TILT criada por Degiovani. O objetivo era ensinar e formar uma nova geração de criadores de jogos e entusiastas, através de conteúdo próprio e mensalidades.

Anotações sobre os registradores do jogo, durante o desenvolvimento das primeiras versões do Amazônia.
Mapa da memória dos micros compatíveis com o Sinclair ZX Spectrum, em relação aos endereços base para compilação dos blocos de programação.
Lista parcial dos comandos da aventura, montada no Sistema Editor de Adventures, versão 3.4, usado nas versões do jogo para MSX, ZX Spectrum e IBM PC – CGA, mostrando a sintaxe das instruções da linguagem especial criada para esta finalidade.

Renato Degiovani voltaria a sua obra primordial em 2010, quando Amazônia voltou a ser aperfeiçoado e retornou a divulgar seu código fonte de forma aberta, com comentários para a comunidade.

Em 2012, o adventure pioneiro penetrou em uma nova fronteira e recebeu sua primeira versão em HTML, disponível para rodar em qualquer dispositivo com um navegador de internet. Essa versão foi otimizada para funcionar com mouse ou através de telas touch screen. Uma segunda versão em HTML foi produzida em seguida, adaptada para celulares e dispositivos com tela pequena.

Legado

Décadas depois do lançamento de Amazônia, Degiovani ainda é um ferrenho defensor da identidade nacional. Em entrevista publicada em 2014, o veterano dispara: “minha percepção é que os temas nacionais sempre foram um diferencial de peso na venda de jogos das décadas de 80 e 90. A partir dos anos 2000, com a chegada do conceito de game globalizado, as pessoas passaram a achar que, para atingir o mundo, os jogos tinham que ser feitos em inglês, sem enredo com temática brasileira. Nós vamos pagar caro por este erro por muito tempo”.

Atualmente, Degiovani segue trabalhando com aquilo que gosta: desenvolver jogos, ensinar aos outros e fomentar o crescimento de uma indústria local que, com certeza, ele ajudou a fundar.

Enfim, na selva a sua principal preocupação deverá ser sempre sobreviver e retornar à civilização. Para tanto você deverá contar com suas habilidades, perspicácia, bom senso e inteligência. Lembre-se que estará sempre sozinho e que um passo em falso pode significar a sua morte.