Quem entra no consultório do psicólogo Howard Scott Warshaw, ” o terapeuta do Silicon Valley”, como ele mesmo se anuncia, não imagina que esse senhor de 58 anos vendeu milhões de cartuchos da Atari nos anos 80.
Ou que ele é apontado, injustamente, como o principal culpado da quebradeira da indústria dos jogos eletrônicos naquela mesma década.
Howard Scott Warshaw pode ser definido como um homem de muitas vidas e muitos conhecimentos. Ele se graduou em Matemática e Economia. Tem um mestrado em Engenharia da Computação. Tem outro mestrado em Psicologia e agora é terapeuta. Mas ele já foi programador de jogos. Foi corretor de imóveis. Foi documentarista.
E foi o sujeito que fez o pior jogo eletrônico de todos os tempos.
Topo do Mundo
Mas em 1982, Warshaw tinha o mundo em suas mãos. Era uma época em que programadores eram heróis e podiam e faziam um jogo inteiro com as próprias mãos, cabendo em apenas 4K de armazenamento para cartuchos. Se desse sorte, poderia trabalhar com 8K. Era o início da indústria dos consoles domésticos e o nome “Atari” fazia o mercado tremer e as crianças felizes. E, dentro da Atari, Warshaw era rei.
O jovem programador havia criado Yar’s Revenge, uma bem-sucedida adaptação de um jogo para fliperama chamado Star Castle. Conhecendo as limitações que tinha em relação aos arcades, ele tirou leite de pedra: extraiu os elementos básicos de jogabilidade e geométricos que tornavam Star Castle interessante e compactou como podia para entrar no cartucho do Atari 2600. O resultado foi um jogo que, inicialmente, a própria Atari não colocava muita fé, mas testes realizados com uma audiência piloto deram ao jogo uma nota 4.5 de 5. A empresa criou uma história em quadrinhos (também escrita por Warshaw, que jogava nas onze posições) para acompanhar Yar’s Revenge e explicar a história de seu universo e colocou tudo no mercado.
Foi o título original de maior venda da História da Atari e é considerado até hoje um dos melhores jogos do período. E Warshaw nunca tinha programado um jogo antes.
O sucesso colocou o programador na linha de frente para trabalhar em Raiders of the Lost Ark, adaptação do filme Os Caçadores da Arca Perdida, sucesso absoluto de bilheterias. Warshaw se ofereceu para fazer o trabalho e acabou voando para os estúdios da Warner Brothers, ter seu primeiro (de muitos) encontros com Steven Spielberg, diretor do filme. Com o selo de aprovação do cineasta, Warshaw voltou para o escritório e produziu seu segundo cartucho a vender milhões de unidades. Raiders of the Lost Ark coletou elogios da crítica por conseguir colocar muitos elementos presentes no filme e uma jogabilidade mais aberta, com múltiplas soluções possíveis e até mesmo um final, uma novidade para a época, em míseros 4K de programação.
Mas o reinado de Warshaw chegaria ao fim com seu terceiro desafio…
“E.T. Phone Home”
Com o jogo de Os Caçadores da Arca Perdida no currículo, o programador foi a primeira escolha da Atari para criar um jogo inspirado em E.T.: O Extraterrestre. O filme era um fenômeno de popularidade incontestável e a produtora tinha certeza de que qualquer coisa, literalmente qualquer coisa, que trouxesse seu nome na capa também iria vender como água no deserto. Mas as negociações pelos direitos de adaptação se arrastaram por meses…
… até que Warshaw recebeu uma ligação telefônica no escritório. Era Ray Kassar em pessoa, o CEO da Atari, ligando de um quarto de hotel para saber se o programador poderia assumir a tarefa porque Steven Spielberg fazia questão que ele estivesse ligado ao projeto. Ninguém diz “não” para um pedido desses e foi assim que Howard Scott Warshaw deu seu primeiro passo em direção ao fosso onde seu nome seria enterrado para sempre.
Era o final de Julho de 1982 e a Atari queria o jogo pronto para o Natal. Então, o programador teria seis meses para trabalhar no projeto? Errado. O processo de gravação dos cartuchos precisava de dois meses e meio. O CEO foi claro: “precisamos dele para o dia primeiro de Setembro”. No cronograma de E.T. the Extra-Terrestrial, Warshaw tinha apenas cinco semanas para desenvolver.
Ele tinha levado 5 meses para fazer Yar’s Revenge. Ele tinha levado 7 meses para fazer Raiders of the Lost Ark. Cinco semanas para fazer E.T. the Extra-Terrestrial não era apenas insano. Era impossível: correspondia a 1/13 do tempo médio gasto na indústria de jogos naquele período.
Por cinco semanas, o programador “viveu” o jogo. Montou em sua casa uma estação de trabalho capaz de seguir o desenvolvimento. Por cinco semanas, ele só não estava trabalhando no jogo quando dormia ou quando estava dirigindo entre sua casa e o escritório. Ele tinha um gerente que controlava se ele estava se alimentando direito. Quando terminou o jogo, Warshaw não acreditou que tivesse conseguido.
Spielberg sugeriu que a adaptação fosse no estilo de Pac-Man, outra febre da época. Mas o programador descartou a ideia e convenceu o diretor de que este não seria o caminho: clones de Pac-Man existiam aos montes e E.T.: O Extraterrestre merecia mais do que isso.
E Warshaw estava certo. O filme merecia mais do que isso. E o público também. Mas o resultado entregue pela Atari conseguia ser bem pior do que um clone maroto de Pac-Man e ninguém se deu conta até ser tarde demais.
“Não É Divertido”
A Atari encomendou 4 milhões de cartuchos do jogo. Reza a lenda que era um número superior ao número de consoles capazes de rodar o jogo.
Warshaw foi convidado para a estreia inglesa do filme e ganhou um assento em frente da Princesa de Wales.
Steven Spielberg apareceu em vídeos promocionais para divulgar o jogo. Uma colossal campanha de marketing foi montada.
Nenhum deles imaginaria que pouco depois um garoto de dez anos resumiria o jogo para o The New York Times com uma devastadora frase de três palavras: “não é divertido”. Muitos jogadores reclamaram da dificuldade frustrante, da falta de objetivos e da óbvia ausência de carisma do protagonista. A Atari nunca mais se recuperaria da quebra de expectativas. Warshaw nunca mais lançaria um jogo.
E o “jogo do ET” ganharia a fama de ser a primeira peça do dominó que derrubou toda a indústria dos jogos eletrônicos na primeira metade dos anos 80. Apesar de ter vendido cerca de 2 milhões de unidades. Ainda assim, se os números estão corretos, isso representava apenas metade do número de cartuchos produzidos pela Atari. Por décadas, especulou-se que os cartuchos devolvidos pelas lojas teriam sido enterrados em um aterro sanitário. Somente em 2014, uma equipe de documentaristas provou que esse foi mesmo o trágico destino do jogo.
Terapeuta do Vale do Silício
Howard Scott Warshaw seguiu com sua vida. A Atari jamais concluiu seu jogo seguinte. Ele saiu da produtora, foi corretor imobiliário (odiou a experiência), tentou voltar para a indústria, bateu na porta da Sega e da Electronic Arts, sem sucesso, virou documentarista e chegou a gravar um filme sobre os anos áureos e a queda da Atari. Também produziu e dirigiu um documentário sobre a cena sadomasoquista em San Francisco (18+).
Em 2008, se reprogramou como terapeuta. “Talvez uma parte de mim realmente queria compensar por todo o trauma e depressão que eu criei com o jogo do E.T.”, brinca ele em uma entrevista para a BBC. Mas, como “O Terapeuta do Vale do Silício”, Warshaw afirma ser fluente em “inglês e nerd” e se diz capaz de entender os dilemas que afetam os profissionais que trabalham com tecnologia na região. Muitos de seus clientes não conhecem o seu passado, mas ocasionalmente ele usa sua própria experiência pessoal de ter ido do Céu ao Inferno da fama durante suas consultas.
“Todo terapeuta usa sua própria experiência com os clientes. Para mim, é uma coisa muito natural. Programadores e terapeutas são todos analistas de sistemas. Eu apenas migrei para um hardware muito mais sofisticado”, explica.
No mesmo ano em que o jogo foi finalmente desenterrado das profundezas do deserto, Warshaw fez as pazes com sua criação. Convidado pela produção do documentário, ele estava lá quando os primeiros cartuchos começaram a brotar do chão. Ele nunca tinha acreditado nos rumores, mas ali estava: seu jogo de mais de 30 anos atrás escondido como algo tóxico ou radioativo. Mas também havia uma multidão de curiosos e de fãs do seu trabalho. Ao final do dia, o programador estava de volta ao topo do mundo, distribuindo autógrafos e se curando do seu próprio trauma.
“ET é realmente o pior jogo de todos os tempos? Provavelmente não. Mas a história da queda da indústria dos jogos precisava de uma face e essa foi a do ET”, lamenta o ex-programador. Esse é um estigma do qual Howard Scott Warshaw dificilmente irá se livrar em vida: o homem que fez o pior jogo eletrônico de todos os tempos. Mas ele leva na esportiva: ” eu também fiz Yar’s Revenge e esse é frequentemente identificado como um dos melhores de todos os tempos. Então, entre os dois, eu tenho a maior variação de qualquer designer na história!”.
Definitivamente, não é para qualquer um.