O mercado de jogos eletrônicos nacionais explodiu nos últimos anos, com novos títulos chegando às prateleiras digitais em ritmo acelerado. Essa série busca traçar um perfil de alguns destes desenvolvedores brasileiros que lutam por um espaço nesse mercado em ascensão.
Suâmi Abdalla-Santos faz parte da Uruca Game Studio, uma pequena desenvolvedora de Brasília com alguns títulos lançados, inclusive no Steam. Queen of Seas chegou à loja da Valve em Fevereiro desse ano, trazendo Yemanjá, a “Rainha dos Mares” do título, como tema principal. A empresa já teve outro jogo aprovado através do agora extinto Greenlight e está aquecendo os motores para sua próxima empreitada.
Conversamos com o desenvolvedor sobre seus projetos anteriores e o que o futuro reserva para o estúdio:
1) Como surgiu a ideia de trabalhar com jogos eletrônicos no Brasil?
Para mim, surgiu depois de alguns episódios cansativos na minha carreira anterior. Eu sou historiador e trabalhava na área de pesquisa e ensino em ciências humanas e sociais, tinha vínculo com a Universidade de Brasília (UnB), mas atuava em diversas universidades do Brasil e até de fora do país. Certo dia, coisas ruins aconteceram no ambiente de trabalho por pura vaidade e razões fúteis de alguns, então decidi que iria fazer outra coisa da minha vida. Comecei uma graduação em Análise e Desenvolvimento de Sistemas e acabei por conhecer a Global Game Jam, em 2015, que foi realizada na sede da Behold Studios. Depois que participei desse evento tive a certeza de que era isso que gostaria de fazer para o resto da vida, então mergulhei de cabeça.
2) Como começou sua relação com os jogos eletrônicos? Quais são suas influências?
Começou desde que eu me entendo por gente. Com uns 5 anos eu já jogava no Atari 2600 da minha irmã e minha mãe era analista de sistemas, então sempre tivemos computador em casa desde a década de 80. O meu primeiro videogame foi o Master System, que ganhei em 1990, no meu aniversário de 8 anos. Algum tempo depois ganhei um Super Nintendo,com 15 anos comecei a trabalhar e comprei o meu primeiro computador usado. Minhas principais influências são os jogos de RPG do Super Nintendo, como Legend of Zelda: A Link to The Past e Final Fantasy II, e os games de computador da época do 386 e 486, como Full Throttle, Loom, Another World, Prince of Persia e Warcraft 1 e 2. Entre os estúdios independentes que me influenciam hoje em dia estão a Behold Studios e a Joymasher (alguém devia dar um Oscar pra esses dois estúdios), além de colegas, como o Lucas Molina, criador do Painters Guild, e o Paulo Brunassi, da NukGames.
3) Quem mais trabalha na Uruca Game Studio? A equipe ampliou recentemente, correto?
Atualmente somos três. O fundador da Uruca é o meu sócio, Philippe Lepletier. Eu entrei depois, fizemos um acordo e cada um dos dois trouxe para a empresa um game que já havia desenvolvido. A minha contribuição foi o Queen of Seas, a do Philippe foi o Rocket Scrap. Recentemente, contratamos o Felipe Osório como nosso estagiário na área de programação, ele está nos ajudando bastante com o desenvolvimento do Bacon Tales, aprendendo e ensinando muito aqui.
4) Queen of Seas é o primeiro título da desenvolvedora no Steam. Como tem sido a recepção do público?
Sinceramente, tem sido melhor do que eu imaginava. Eu tinha um pouco de receio pelo fato de Queen of Seas ser um jogo casual, com pouco tempo de gameplay para se chegar até o final. Hoje eu vejo que no Steam tem espaço para quase todo tipo de jogo, é muito legal ver que as pessoas entram na página do “Queen”, assistem ao vídeo, compram, baixam, jogam e ainda interagem na central da comunidade, postam prints e dão opinião. Temos a impressão que o público do Steam é formado exclusivamente por jogadores “hardcore”. De fato, é verdade que boa parte é assim, mas também tem muitos que gostam de jogos casuais, jogos experimentais, visual novels, date sims, entre outros gêneros menos populares. Tem espaço para todos.
5) De onde brotou esse interesse por um título com temática afro-brasileira? Pode falar um pouco de sua origem?
Bem, Queen of Seas foi um game que eu comecei a desenvolver no dia 2 de fevereiro, que, por coincidência, é o dia de Yemanjá, data bem festiva na minha cidade natal, Salvador, então acabei juntando uma coisa com a outra. Além disso, tenho um amigo que é nigeriano, estamos tentando arranjar um tempo para ele traduzir o Queen of Seas para o Iorubá, o idioma nativo dele, a origem de tudo. Eu sou apaixonado pela cultura afro-brasileira, pratico capoeira e, embora eu seja cristão, acho os orixás uma coisa linda e muito inspiradora. No nosso país tem muita mistura e, quando não existe intolerância, todo mundo ganha, tudo fica mais bonito. Se depender de mim, farei muitos jogos com essa temática.
6) Bacon Tales – Between Pigs and Wolves foi aprovado no Greenlight. É a próxima grande investida do estúdio?
Sim, sem dúvida. Acreditamos que o Bacon Tales será um jogo bem divertido e charmoso. Ele mistura elementos da fantasia clássica com nossas próprias invenções. Eu estou terminando de escrever a história do game, inventando uma continuidade para a história já conhecida de “Os Três Porquinhos”. Vai ser um e-book, que estará disponível para baixar junto com o game, para quem tiver interesse em conhecer a trama do jogo com mais riqueza de detalhes.
7) Quais ferramentas são empregadas no desenvolvimento de seus jogos?
A ferramenta mais importante no nosso trabalho é a engine Unity, por ser um ambiente de desenvolvimento com muitos recursos e também por possibilitar a expansão da criatividade sem muitas limitações. Além disso, utilizamos também o GIT, uma ferramenta indispensável para várias pessoas trabalharem no mesmo projeto ao mesmo tempo.
8) Onikoi: Magic Carp é o único projeto da empresa para plataformas móveis? Há interesse em explorar mais esse nicho ou talvez lançar algo para consoles?
Atualmente, é o único projeto para plataformas móveis. A primeira versão do Rocket Scrap foi feita para mobile, mas mudamos o projeto e vamos lançá-lo para PC. Por enquanto, não iremos apostar mais em jogos para dispositivos móveis. Recentemente recebemos um convite da Microsoft para publicar o Bacon Tales no Xbox, por meio do novo programa de desenvolvimento da Xbox Live, então estamos analisando essa possibilidade de lançar o Bacon Tales no Xbox, além de PC.
9) Rocket Scrap tem previsão de lançamento para o segundo semestre. Quais são as plataformas?
Será lançado para PC, queremos colocá-lo no Steam ainda este ano. É um projeto que já temos boa parte dos recursos gráficos prontos, portanto, nossa expectativa é que seja um desenvolvimento rápido, entre três e quatro meses, no máximo.
10) Pode falar um pouco sobre o projeto Lixo Inc.?
É um jogo que fizemos em 30 dias corridos, eu como programador e o Philippe como ilustrador. A sensação que tivemos foi como se estivéssemos participando de uma game jam de um mês de duração. É um jogo que se encaixa na categoria Serious Game, em que o jogador precisa administrar uma cooperativa de reciclagem. Para sair vencedor, é preciso, ao final de um período de 24 meses, possuir um caixa superavitário e também aprovação positiva da sociedade. O jogador comanda alguns catadores de material reciclável para coletarem os resíduos gerados pelas residências, indústrias e comércios, depois esse material precisa ser separado por tipo (plástico, metal, vidro e papel) e, por último, ser beneficiado para gerar valor agregado, transformando-se em produtos finais para serem vendidos. Estamos buscando parceiros que tenham interesse em patrocinar o Lixo Inc., pois acreditamos que ele tem um excelente potencial pedagógico e de conscientização para uma sociedade verdadeiramente sustentável e empreendedora.
11) Muitos dos seus jogos foram ou estão sendo desenvolvidos em inglês e a Uruca Game Studio tem aparecido com frequência em Ludum Dares. Como tem sido a reação da comunidade de jogadores estrangeiros em relação a produção de vocês?
A reação tem sido ótima. Cerca de 90% dos jogadores que compraram nossos jogos são de fora do país, uma parte dos Estados Unidos, uma parte da Rússia e também de vários países da Europa. Nossa participação em Ludum Dares se dá mais pela nossa paixão por game jams. Como falei anteriormente, entrei nesse ramo por causa de uma game jam, desde então eu só deixo de participar quando realmente não tem jeito. Teve um dia que eu tinha que fazer uma prova em uma cidade a 240km daqui de Brasília bem no dia de uma Ludum Dare, fui dirigindo, fiz a prova, voltei correndo e continuei participando. Eu acho que a galera que acompanha a gente acaba gostando desse engajamento, eles observam que somos apaixonados e comprometidos.
12) Você acha que ainda há muita resistência do público brasileiro contra jogos nacionais ou isso vem mudando nos últimos anos?
Acredito que tem mudado nos últimos anos, mas, na minha opinião, a maior parte do público brasileiro ainda olha os indies como “os caras que fazem joguinho” e não gostam de pagar pelo nosso trabalho. Vejo jogos brasileiros lindíssimos, que custam menos de 30 reais no dia do lançamento, sendo classificados como “caros”. Não é possível que uma pessoa ache caro pagar o valor de um lanche de fast food em um jogo bacana que vai dar umas 15 horas de entretenimento para ele. Por outro lado, quando eu estava pedindo votos para a campanha do Bacon Tales, no Greenlight, vi muitos brasileiros que ficaram bem “pilhados”. Foi por causa dessas pessoas que participaram e insistiram que nós resolvemos colocar a opção de alterar o idioma no meio do jogo.
13) Há um intercâmbio entre vocês e outros desenvolvedores nacionais? É forte a cena em Brasília?
Sim, o intercâmbio de experiências e conhecimento é fundamental para que os indies possam se desenvolver. A cena aqui em Brasília é bem interessante, acho que podemos classificá-la como “forte”, sim. Uma coisa que a grande maioria dos desenvolvedores indies possui na cabeça é a ideia que não somos concorrentes, afinal, nenhum jogador deixa de comprar o meu jogo só pelo fato de ter comprado o seu, se ele gostou dos dois jogos, ele vai comprar os dois, ou seja, o meu produto não interfere nas vendas do produto do meu colega. Temos, em Brasília, a Behold Studios, a Bad Minions, a Balance Inc., entre outras, sempre nos encontramos em eventos e mostra de jogos que são organizadas, na maioria das vezes, pelo pessoal da Behold, e que conta com apoio financeiro de mais de 20 desenvolvedores locais. Nós, da Uruca Game Studio, já organizamos um encontro de desenvolvedores e também quatro game jams, aqui, onde funciona a nossa sede.
14) Como você vê o cenário dos jogos nacionais nos próximos dez anos?
Acredito que estará mais maduro. Talvez até tenha menos pessoas verdadeiramente dedicadas ao desenvolvimento de jogos, mas serão pessoas com mais pé no chão, novatos que já irão iniciar a carreira inspirados em cases de sucesso da nossa geração atual, ou então o pessoal da “velha guarda” que conseguiu montar um modelo de negócio realmente sustentável e estará firme e forte, com muita experiência para compartilhar e influenciar as próximas gerações.
15) Nas horas vagas, quais são os seus jogos preferidos?
Sou bem “Old School”, são poucos jogos modernos que conseguem me manter entretido por horas, os que conseguem manter minha atenção são versões novas de jogos antigos. Gosto muito do Starcraft 2, comecei a jogar a franquia no lançamento do Starcraft 1, em 1998. Jogo a franquia X-COM até hoje, atualmente estou jogando o XCOM 2, mas comecei lá atrás, em 1996, com o “Terror From the Deep”. Outro game da década de 1990 que jogo várias horas seguidas até hoje é o Lords of The Realm 2, da Sierra, que é espetacular! Jogo Dota há uns 12 anos, mas ultimamente tenho mais assistido aos campeonatos do que jogado de fato. A minha maior paixão também é um jogo antigo: Final Fantasy Tactics, da Square. Entre os indies, gosto muito do This War of Mine, Odallus: The Dark Call e Chroma Squad, jogo todos eles ao menos uma vez por mês.