Apenas 4 kb de memória. Era tudo que bastava em 1972, um milionésimo da capacidade do celular mais básico cinquenta anos depois. Ainda assim, essa memória de somente 4 kb custou milhares de dólares e precisou ser importada do exterior. Essa mesma memória foi o único componente que não foi fabricado no Brasil do primeiro computador criado em solo nacional. O “Patinho Feio” era uma obra de arte feita com as mãos e o suor de um grupo de voluntários e estudantes da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Para todos os fins, ele permaneceu único de sua espécie e foi o marco zero de toda uma indústria.
Para entender essa história completamente, primeiro é necessário voltar para o ano de 1968. Um grupo de pesquisadores do Departamento de Engenharia Elétrica teve acesso a um computador IBM 1620. O modelo já estava próximo do fim de sua vida útil pelos padrões da IBM, mas serviu de base para os estudiosos brasileiros. Nascia ali o Laboratório de Sistemas Digitais (LSD). Outras máquinas seriam adquiridas depois, com o mesmo objetivo: criar em solo brasileiro a expertise para a produção de componentes para computadores, assim como outros sistemas digitais, como osciloscópios, plotters e demais periféricos.
Em 1970, a USP reformulou o currículo do curso de Engenharia Elétrica e ele foi dividido entre telecomunicações e sistemas digitais, destacando a importância que essa última vinha tomando no exterior. No LSD, acontecia uma efervescência cultural em torna das novas tecnologias.
Aos alunos que se juntavam a esse movimento, também coube um feito inédito, um ano depois: a conexão, via linha telefônica, entre dois computadores, um no Rio de Janeiro e outro ali, em São Paulo. Para entender a importância dessa aparente brincadeira de alunos, é preciso destacar que a própria ARPANET, a base em cima da qual foi erguida a internet que temos hoje, assim como o protocolo TCP/IP haviam sido criados apenas dois anos antes nos Estados Unidos.
No mesmo ano de 1971, o norte-americano Glen Langdon foi convidado pela USP para ministrar um curso de pós-graduação de arquitetura de computadores na área de sistemas digitais. Langdon era funcionário da IBM, especializado em protótipos de computadores, e já havia morado no Brasil. Em fevereiro, abriu-se a turma, com 18 pessoas, entre alunos de pós-graduação, professores do LSD e estagiários. Foi Langdon que lançou o desafio: o trabalho final seria um esforço coletivo para montar um computador. Seria o primeiro computador brasileiro jamais feito.
Surge o “Patinho Feio”
Oswaldo Fadigas, então diretor da escola de Engenharia Elétrica, se encarregou de conseguir os recursos financeiros para o projeto. Sob orientação de Langdon, os alunos rapidamente desenvolveram a parte teórica de planejamento da máquina. Porém, o maior desafio viria na hora de colocar a “mão na massa”. A USP não tinha um espaço para que isso fosse possível e foi necessário primeiro estruturar uma oficina para fabricação de circuitos impressos de precisão.
A partir daí, foram montados manualmente um por um cerca de 450 circuitos integrados, 3 mil blocos lógicos, distribuídos em 45 placas de circuito impresso e 5 mil pinos interligados. Nas palavras da professora da USP Edith Ranzini, então com 25 anos (foto do cabeçalho desse artigo): “a gente precisou fazer tudo do zero”. Na confecção das placas de circuito foram utilizados papelão e plástico, uma solução improvisada que a própria professora Ranzini admite que “hoje nem projeto de feira de ciências é feito assim”. Ranzini foi a responsável pela aquisição da memória Philips de 4 Kbytes.
Tudo isso foi alojado em uma carcaça metálica encomendada para a oficina de mecânica da universidade, de acordo com as especificações de seus criadores. Era um cubo de aproximadamente um metro cúbico, pesando nada menos que cem quilos quando montado. Quase metade da estrutura era sua fonte de alimentação, projetada para converter os 110v que saíam da tomada na voltagem requisitada pela máquina. Essa parte era exposta, visível através de um vidro.
O mais curioso para os padrões de hoje é que não havia um monitor no sentido tradicional. Havia um painel de luzes que indicava o fluxo de informações. Para outros tipos de saída de dados, poderia ser conectado um teletipo à máquina, para imprimir resultados de forma gráfica. Como dispositivo de entrada, havia um conjunto de chaves em que era possível programar instruções. Entretanto, o teletipo deveria funcionar também como entrada principal, em que poderiam ser inseridos cartões perfurados com programas já preparados.
A máquina tinha forma e função, mas faltava um nome. O apelido de “Patinho Feio” surgiu de uma reunião de seus criadores, após a informação de que a Unicamp estaria desenvolvendo um computador para a Marinha brasileira. O objetivo da Marinha era equipar suas fragatas com equipamento de primeira linha fabricado no Brasil. Uma vez que o hino da Força Armada menciona um “cisne branco”, a Unicamp batizou seu projeto de Cisne Branco. Com muito bom humor, a equipe do LSD resolveu que seu computador seria então o “Patinho Feio”.
Puxaram o plugue!
A Unicamp não concluiu seu projeto. Por ironia do destino, o tal “Patinho Feio” tinha saído da posição de azarão para o número um: a USP seria a criadora do primeiro computador genuinamente brasileiro. Para celebrar a inauguração da máquina, foi reservado um salão especial do prédio da Engenharia Elétrica. Removeram cadeiras e o tablado. Foi trazido da reitoria um tapete de luxo para cobrir o piso.
Toda essa pompa e circunstância tinha razão de ser. Além do reitor da USP, Miguel Reale, estariam presentes também na cerimônia o governador de São Paulo, Laudo Natel e o bispo Dom Ernesto de Paula.
Tudo precisava funcionar da melhor forma possível. Para causar uma boa primeira impressão, o Patinho Feio já estaria ligado no momento da apresentação, com seu programa de carregamento já executado. Com esse programa rodando, seria apenas uma questão de se inserir o cartão perfurado correto no teletipo para fazer uma demonstração.
Entretanto, houve um imprevisto: no meio da confusão de autoridades e jornalistas, um fotógrafo esbarrou na tomada e desligou o computador. Sem tempo para esperar o programa carregador funcionar, foi necessário programar “á moda antiga”: ditando instruções baseadas em 0 e 1 diretamente através do painel de controle, virando chaves. Quem nunca passou por isso em sua vida profissional? Felizmente, “quem sabe faz ao vivo” desde 1972 e o Patinho Feio encantou as autoridades.
Com tudo funcionando, finalmente foi possível seguir o que estava programado: o primeiro computador brasileiro enviou instruções para a impressora do teletipo. Nesse momento, saiu um papel, com o desenho de um pato feito de asteriscos e a mensagem: “eu sou o Patinho Feio”.
Laudo Natel, o governador do estado, elogiou a equipe, afirmou que a USP havia permitido que o brasileiro acreditasse mais no Brasil e no futuro e declarou: “hoje já podemos dizer que temos algo a oferecer no terreno da computação”.
O canto do cisne
O Patinho Feio nunca foi embarcado em uma fragata da Marinha, nunca foi replicado. Ele não deu origem a uma indústria ou chegou ao consumidor. Porém, os 12 alunos que participaram diretamente do projeto e todos aqueles que estiveram envolvidos de alguma forma ajudaram a moldar a História da Computação no Brasil.
Do projeto do Patinho Feio, surgiu o G-10, uma iniciativa em conjunto entre a USP e a PUC-RJ para desenvolver um computador adaptado às necessidades da Marinha. Esse protótipo serviu de base para o primeiro computador comercial brasileiro, o Sistema 500 (MC 500), lançado pela Cobra, em 1975. Era um momento de reserva de mercado e buscava-se uma política de desenvolvimento de computadores nacionais.
A professora Ranzini também se lembra de que os talentos envolvidos no Patinho Feio não foram desperdiçados: “a gente forneceu equipe de engenharia para o Itaú Tec, para Cisco, para todas essas empresas que estavam começando”. Dos corredores do LSD ainda sairiam a automação dos trens da Fepasa, um sistema de apoio a usuários de rodovias, uma central de telefonia para São Paulo e mais.
Com sua missão cumprida, o Patinho Feio existe até hoje. A máquina em sua forma original ainda pode ser encontrada em exposição, protegida por um painel de vidro, no principal corredor de acesso à diretoria da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.