Nos anos 70 ninguém sabia para onde o mundo da computação estava indo.
Sabia-se que ele estava indo rápido e que literalmente qualquer um com boas ideias poderia se tornar o carro-chefe da indústria em um piscar de olhos. Pensando nisso, uma dupla transformou um dos cômodos da casa em uma fábrica de computadores, com componentes testados na mesa da cozinha e armazenados no banheiro. Essa mesma dupla acabaria construindo um império, saindo na frente com ações negociadas na bolsa de valores, conquistando capas de revistas e cativando consumidores de costa a costa dos Estados Unidos com o design inovador de seus produtos. Mas quem eram?
Se você pensou Steve Jobs e Steve Wozniak, errou por vários quilômetros de distância.
Estamos falando de Lore Harp e Carole Ely, duas donas de casa que entraram para a História da Computação com a Vector Graphic Inc.
Vida Suburbana
Exceto que Lore Harp não era uma dona de casa qualquer. Quem visse sua casa suburbana em uma vizinhança suburbana com duas filhas na escola suburbana e um marido trabalhando de 9 às 5 todos os dias em um emprego sem expressividade poderia concluir que ali estava uma mulher normal de sua época. Mas Lore Lange-Hegermann, como era seu nome antes do casamento, já havia fugido de casa na Alemanha e, contrariando todos os desejos de seus pais, resolvera morar nos Estados Unidos aos 20 anos. Não era uma mulher normal e muito menos uma que se levaria os dias dividida entre tarefas domésticas e a educação das crianças.
Com um bacharelado em Antropologia no currículo, ela se sentia deslocada naquela vida. ”Eu não suportava ficar em casa”, contaria ela dez anos depois para um artigo no New York Times. “Estava me deixando louca. Todo mundo pensava que eu era estranha porque eu não ia ao clube de bridge ou ia fazer minhas unhas”.
Lore Harp encontrou em uma vizinha uma alma gêmea.
Carole Ely e Lore Harp tinham filhos que frequentavam as mesmas aulas. Ambas estavam entediadas com o horizonte suburbano que o destino parecia lhes ter reservado. Ely já havia trabalhado para grandes firmas de investimento na Costa Leste, como a Merrill Lynch, e havia largado tudo para se dedicar aos filhos. Com as crianças mais crescidas, a vontade de voltar ao mundo dos negócios era muito forte.
Juntas, decidiram iniciar um empreendimento. Faltava decidir o que seria.
Nesse momento, entra em cena Bob Harp, marido de Lore, e os computadores.
Nascia a Computação
Dr. Robert Harp era um cientista sênior dos Hughes Research Labs e um aficionado por uma tal de computação pessoal.
Até metade dos anos 70, o que se convencionava chamar de microcomputador era um titã maciço do tamanho de uma geladeira, que custava mais do que um carro e nenhuma família ou hobista pensaria em adquirir. Até surgir o Altair 8800, um kit de construção de um computador que era realmente micro, barato e que qualquer entusiasta de eletrônica poderia montar em casa. Bob Harp encomendou um assim que saiu.
Quando recebeu o kit, o engenheiro percebeu logo que a placa de memória não era tão boa como ele imaginava. Como um bom engenheiro que era, resolveu arregaçar as mangas e desenhar sua própria placa de memória compatível com o Altair 8800. Ele viu que tinha feito algo interessante, mas deixou a placa e a ideia na gaveta por quase um ano.
A placa poderia estar acumulando poeira até hoje em um caixa no sótão da família Harp se, em 1976, sua esposa não tivesse revelado que estava procurando alguma coisa para comercializar e abrir um negócio. Bob então se lembrou da placa de memória.
Lore na mesma hora ligou para sua amiga: “Carole, o que você acha de começar uma empresa de computação? Eu tenha aqui essa placa RAM de 8K”. Carole respondeu: “o que é uma placa RAM?”.
Para introduzir as duas no mundo da computação, Bob as levou para uma feira local de entusiastas. Era um mercado embrionário, mas efervescente, disposto a pagar boas quantias por produtos fabricados no fundo de quintais e de qualidade duvidosa. Era uma indústria que nascia. Era a oportunidade que duas donas de casa precisavam para colocar sua massa cinzenta para funcionar e entrar com profissionalismo onde amadores já tinham sucesso.
E Nascia a Vector Graphic
Ironicamente, o nome da empresa viria de um produto que nunca foi produzido, o que revela o início confuso da empreitada. Segundo sugestão de Bob Harp, surgia a Vector Graphic. Era o nome de um tipo de placa gráfica que ele planejava fazer para comercializar também, mas nunca concretizou a ideia. O nome ficou para sempre.
Ao analisar o mercado, Lore e Carole perceberam, talvez até antes que um certo Jobs do outro lado do horizonte, que os modelos apresentando eram todos esteticamente espartanos, para não dizer feios. O novo negócio que nascia poderia e deveria oferecer ao mesmo tempo qualidade e design. Estilo se tornou uma palavra de ordem na casa dos Harp e isso ia desde a preocupação com as cores dos fios empregados, para que não entrassem em conflito com outros componentes até, anos mais tarde, na apresentação do computador completo quando a empresa se expandiu.
“Eu não sei bem o que as pessoas pensavam de nós: duas mulheres procurando por capacitores coloridos. Mas nós estávamos interessadas em quais cores entravam em nossas placas”, revelou Ely em entrevista.
Os próprios fornecedores não colocavam muita fé na Vector Graphic. Eles não tinham um escritório, duas mulheres estavam à frente do negócio. Na verdade, nem Bob Harp colocava fé na Vector Graphic e seguiu em seu emprego ainda por um ano. Mas Carole e Lore conseguiram conquistar a confiança de um número razoável de fornecedores e preços em conta. Esse traquejo comercial seria outro pilar do crescimento da empresa mais para frente.
Inicialmente, o processo era artesanal. A família inteira ajudava a montar as placas de circuito, que eram armazenadas no banheiro. As vendas eram feitas pelo correio, com pagamento adiantado e sem direito a devolução, o que garantiu um orçamento equilibrado nesse momento inicial.
Com o tempo, Bob começou a produzir também placas para interface gráfica de texto, placas de entrada/saída, fonte de energia, outra placa de memória e placas-mãe para conectar todos os componentes. Nunca fez uma placa vetorial. Mas estava claro qual era o próximo passo da empresa: juntar tudo e fabricar seu próprio computador pessoal.
Bob montou o Vector 1. Carole e Lore insistiram no diferencial: o modelo veio em duas opções de cores, laranja e verde. Em uma época em que os primeiros fabricantes estavam pouco se importando com a aparência dos computadores e muitos nem mesmo tinham um gabinete envolvendo tudo, o Vector 1 era elegante e se destacava na multidão pelo mesmo preço dos demais. A escolha pelo design ia além da estética e entrava na funcionalidade: o Vector 1 também foi o primeiro computador pessoal com dois botões e nada além de dois botões frontais. Enquanto a concorrência trazia chaves, leds e botões para serem ligados, o Vector 1 tinha um botão para ligar e outro para resetar. Simples assim e se tornou o padrão da indústria até os dias de hoje.
O Vector 1 também inovaria em sua versão Vector 1+, ao introduzir um drive de disquete no gabinete e se tornar pioneiro no suporte ao formato embutido no próprio computador.
Começava ali um Império.
Expandindo, Conquistando e Esbarrando em Problemas
Se por um lado o Vector 1 era um produto luxuoso e bonito, nos bastidores Carole e Lore montavam uma rede de distribuição como ainda não se tinha visto antes. Vendedor a vendedor, varejista a varejista, a dupla entrou em contato e construiu um forte relacionamento que superava e muito a venda quase amadora que a concorrência fazia. As duas poderiam não entender muito de eletrônica ou engenharia, mas o tino comercial estava nelas. O passo seguinte foi criar uma certificação para que os próprios revendedores atuassem como suporte técnico: ganhava o usuário final, que poderia dispor de assistência ao seu alcance, lucrava o lojista que fidelizava o cliente, saía vitoriosa a Vector Graphics ao fidelizar o lojista.
E a Apple nessa história? “Nós sempre olhamos para o Apple II mais como um brinquedo”, relembra Lore. Steve Jobs e Steve Wozniak estavam de olho na computação pessoal, a Vector Graphics mirava no mundo dos negócios, nas empresas. De uma forma ou de outra, o setor estava mudando, não havia mais espaço para computadores montados no braço por entusiastas e o mercado desejava máquinas que você podia tirar da embalagem e sair usando. Tanto a Apple quanto a Vector tinham antevisto a mudança e agido de acordo.
Mas o peixe que a Vector pescava era maior. Enquanto um Apple II custava em torno em US$2.000 em 1979, um Vector S-100 não saía por menos de US$4.000, podendo chegar a US$20.000 dependendo da quantidade de memória e do armazenamento em disco.
A Apple mostraria suas garras naquele mesmo ano com o lançamento do VisiCalc. Foi o primeiro programa de planilhas, o primeiro daquilo que hoje se chama “aplicação matadora”, um software tão bom e necessário que carrega toda uma cultura com ele. Para a Vector, o VisiCalc foi um incômodo, mas também um presságio de problemas maiores: muitos de seus clientes corporativos reais ou potenciais estavam de olho no programa. E o VisiCalc só rodava no Apple II.
Mas a empresa ainda sobreviveria ao impacto da expansão da rival. No ano seguinte, entretanto, outra catástrofe sacudiria a Vector Graphic.
O Gigante Acordou
Em 1980, um inimigo muito maior pairava sobre as cabeças de todas as empresas de microcomputadores. Ele tinha 25 bilhões de dólares de faturamento anual, liderava o mercado mundial de mainframes e atendia pelo nome de IBM.
Em 1980, esse gigante chamado IBM resolveu que era hora de entender esse mercado de computadores pessoais. Como um estrategista treinado em décadas de confrontos, enviou emissários para as principais empresas do ramo com a justificativa de estar buscando um parceiro para licenciar tecnologia. Em troca, aprendia como funcionava a fabricação e o comércio dos microcomputadores.
Lore Harp não acreditou no engodo. Quando Don Estridge, responsável pelo emergente setor de PC da IBM apareceu de surpresa na porta da Vector Graphic ao lado de meia dúzia de “consultores”, foi recebido com frieza. ” Nós somos uma empresa de 25 milhões de dólares anuais e a IBM quer licenciar de nós?”, teria dito Lore sem preâmbulos para Estridge. Ainda assim, o emissário da IBM saiu de lá em bons termos e ainda levando um Vector 3 para avaliação.
Era o começo do fim. E Lore sabia. Imediatamente, convocou uma reunião com a cúpula da Vector e anunciou: “nós temos um ano antes que eles entrem, e o mundo inteiro vai mudar”. A meta de Lore se tornou colocar as ações da Vector Graphics na Bolsa de Valores antes que fosse tarde demais.
Ao contrário do que se imaginava, a IBM não copiou a arquitetura do Vector 3. Tampouco a licenciou como havia sugerido. Mas fez algo ainda mais assustador: estudou minuciosamente a rede de fornecedores de software para os computadores da Vector e aprendeu a lição do VisiCalc. Antes de finalmente revelar ao mundo seu IBM PC, o gigante realizou acordos secretos com todos os principais fornecedores da Vector para ter certeza de que seus futuros programas seriam compatíveis com seu novo hardware desde o lançamento. Qualquer vantagem estratégica conquistada ao longo de anos de mercado que a Vector poderia ter, agora não existia mais.
A IBM enxergava para frente e já havia entendido que compatibilidade de software iria definir quem sobrevive e quem morre na indústria de computação.
Bob Harp viu o que estava chegando e tentou alertar o quadro de diretores da empresa que ajudara a fundar. O próximo computador da Vector teria que ser compatível com o IBM PC e abandonar a arquitetura que os havia levado até ali. O homem que havia começado a tecnologia que fizera nascer a empresa estava disposto a abdicar desta mesma tecnologia para seguir a tendência. Ninguém lhe deu ouvidos. Após anos de sucesso, do ponto de vista estratégico parecia a todos arriscado demais negligenciar sua atual base de clientes para seguir o padrão imposto por um competidor.
Foi a gota d’água de um longo desgaste. Bob Harp terminaria se divorciando de Lore Harp. Nas palavras do próprio engenheiro, “foi uma disputa de ego. Ela queria fazer as coisas de um jeito; eu queria fazê-las de outro”. Bob fundaria a Corona Data Systems e criaria o primeiro clone do IBM PC, tão similar que chegaria a encarar um processo judicial. A Vector seguiria em frente, sem seu engenheiro-chefe e com a mágica união inicial desequilibrada.
No ano seguinte, a empresa colocaria suas ações na Bolsa de Valores. No mesmo ano, a Vector bateria seu recorde de vendas, com 36 milhões de dólares de faturamento. Os prognósticos sombrios pareciam exagerados.
Mas o mercado estava mudando e era impossível negar. Pequenas e médias empresas que antes consumiam as soluções da Vector estavam migrando em massa para a combinação de um IBM PC e Microsoft DOS. A empresa não estava cega para a alteração do cenário, mas reagiu muito tarde: o Vector 4 era uma máquina híbrida, tanto compatível com o sistema compatível quanto com o novo modelo do IBM PC. Não atendia direito nenhum dos dois cenários. As vendas começaram a desabar.
No meio de 1982, Lore Harp se afastou do cargo de CEO. Em 1983, ela foi chamada de volta pela junta de diretores. Mas não dava para fazer mais nada. No mesmo ano, se desligou da empresa, junto com sua antiga vizinha, Carole Ely.
Em 1984, o faturamento da Vector foi de apenas 2,1 milhões de dólares. Em 1985, ela abriu falência. Em 1987, não havia mais nada da Vector Graphics Inc.
Assim como dezenas de empresas que não se adaptaram ao padrão imposto pelo IBM PC. Apenas uma empresa de tecnologia sobreviveu por décadas, entre altos e baixos, com sua própria arquitetura de hardware. Essa empresa era aquela mesma Apple que antes havia sido considerada “um brinquedo”.
Os Anos Dourados e o Legado
Em onze anos de existência, a Vector Graphic marcou seu lugar na história da computação. É fácil perceber que o segredo do seu sucesso estava na conjunção perfeita de engenharia, administração e marketing, respectivamente Bob Harp, Lore Harp e Carole Ely.
A história das duas donas de casa que alavancaram uma empresa se tornou capa de revistas e jornais durante os anos de glória. Carole foi sumindo dos holofotes, enquanto Lore se tornava a face da empresa (para incômodo do seu marido). Mas era mais uma jogada de marketing, de uma das primeiras empresas de computação que saiu do seu nicho para se tornar uma marca conhecida do grande público. As manchetes atraíam olhos curiosos, impulsionavam as vendas.
E Lore ia além do papel de figura pública que frequentava eventos, ilustrava capas, viajava e fazia amizades com nomes como Bill Gates ou Steve Jobs. Nas palavras do jornal New York Times, em 1983, já na curva descendente da empresa,”Lore Harp rapidamente mostrou que ela era mais do que uma gerente de negócios enquanto ela guiava a empresa com um afiado senso das necessidades do mercado e suas possibilidades”. Como na época em que as encomendas eram resolvidas na cozinha de casa, para Lore, o fundamental era manter o fluxo de caixa positivo, economizar despesas desnecessárias e evitar dívidas.
Quem trabalhou na Vector Graphic no período áureo não economiza nos elogios. Lore era vista como uma figura maternal que conduzia a empresa baseada no talento humano. Reinava o regime da meritocracia, e promoções e aumentos eram baseadas em realizações e habilidades e não em nível educacional ou gênero.
Sobre a questão do gênero, Lore não se recorda de ter enfrentado barreiras durante a ascensão da Vector Graphic. Mas Carole Ely afirmou que em seus tempos de Wall Street, antes de fundar a Vector, eram raríssimas as oportunidades de crescimento para uma mulher no mercado. Ironicamente, ela e Lore se tornaram as primeiras mulheres a colocar uma empresa fundada por elas na mesma Bolsa de Nova York.
Dentro da Vector, todos tinham chances iguais e que a cultura da empresa prezava muito isso. Em 1981, quando as ações se tornaram públicas, Lore Harp fez questão de cada funcionário recebesse uma parcela de ações equivalente ao tempo trabalhado na empresa. O conselho diretor ameaçou um protesto, alegando que o controle acionário deveria estar nas mãos da gerência. Lore bateu o pé e defendeu que o sucesso da Vector estava no trabalho de cada empregado, que mesmo o menor salário na linha de produção tinha responsabilidade e que um parafuso mal-colocado seria culpa de todos. Ela venceu a disputa e as ações foram repartidas.
Quase quarenta anos depois e as lições da Vector Graphic permanecem presentes. Uma marca a ser construída, preocupação com o design das peças, uma rede de parceiros no varejo, simplicidade para o usuário, um ambiente de trabalho saudável e igualitário. Estas características, mais do que as grandes e, no olhar de hoje, desajeitadas “caixas” do Vector, são o legado da empresa, o exemplo a ser seguido e que permanece na memória de muitos.