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Entendendo o Marco Civil da Internet

Depois de cinco anos de discussões, negociações, alterações, protestos pró e contra e muito “disse me disse”, a PL 21626/11 finalmente foi aprovada esta semana na Câmara dos Deputados. Para os mais íntimos, ela atende por Marco Civil da Internet e tem esse nome porque ela irá funcionar como um Marco, já que não havia esse tipo de regulamentação antes, Civil, porque não legisla sobre penalidades criminais para os infratores e da Internet, porque é disso que estamos falando.

Elaborada inicialmente pelo Deputado Alessandro Molon (PT-RJ) em 2009, esse conjunto de leis percorreu um longo caminho até aqui e ainda tem um longo caminho pela frente. Passar pela Câmara dos Deputados é apenas uma etapa do processo legislativo brasileiro que ainda exige que o projeto seja aprovado no Senado e sancionado pelo Presidente da República. Se sua reta final irá demorar anos, dias ou a eternidade, é algo a ser visto.

Mas, afinal, o que é o Marco Civil da Internet e o que ele muda na sua vida? Ele é um conjunto de regras (PDF), de metas a serem cumpridas para futuras outras leis que ainda irão detalhar o que foi decidido. Na prática, muda pouca coisa, embora a sensação geral agora seja de tranquilidade.

  Votação

Os três pilares do Marco Civil da Internet são: Privacidade, Liberdade de Expressão e, o mais polêmico, Neutralidade.

Privacidade

Privacidade se tornou uma moeda ambígua nos dias atuais onde a grande maioria não se importa em sacrificar  um pouco dos seus dados pessoais em troca de comodidade. Não fosse assim, o Google não estaria compartilhando suas informações por aí, ou o Twitter, na maioria dos casos com o seu consentimento ou desconhecimento. O Facebook, a mais popular rede social da História da Humanidade é frequentemente acusada de saber demais sobre cada indivíduo e até hoje ainda não está muito claro o que está sendo feito com essa informação.

Com os escândalos de vigilância em massa perpetrados pela NSA e por agências de espionagem em quase todo canto do mundo, a privacidade voltou a ser motivo de preocupação.

Privacidade

Com boas intenções, o Marco Civil da Internet determina que todos os dados de um usuário devem ser apagados de um serviço assim que ele encerra sua assinatura. Aquelas fotos que você publicou no Orkut e se arrependeu depois ainda estão lá guardadas em algum lugar, ainda que não de forma pública. Pela nova lei, elas deverão ser apagadas. Monitorar o cumprimento da regra será o grande desafio, mas agora, pelo menos, a lei estará do lado da privacidade.

Inicialmente, o Marco Civil da Internet iria obrigar serviços como Google, Facebook e Twitter a manterem bancos de dados de usuários brasileiros em data centers no Brasil. A medida visaria a dificultar a ação de governos estrangeiros na espionagem dessas informações. Uma vez que logisticamente seria uma ação muito custosa e, na prática, pouco efetiva para proteger esses dados, esse ponto acabou sendo tirado da versão aprovada do Projeto de Lei.

Em contrapartida, provedores de acesso a partir da aprovação da lei serão obrigados a manter pelo período de um ano o registro completo de todas as conexões realizadas por seus clientes. Esse foi o texto que causou maior pânico entre os defensores da privacidade. Mas, pela letra da proposta, será exigido que os usuários não sejam identificados nesses registros. Serão guardados apenas números de IP, hora de conexão e tempo de conexão e mesmo esses dados só poderão ser acessados por ordem judicial. Uma vez que muitos provedores já guardam esse nível de log, por conta própria, pouca coisa irá mudar. Resta saber qual é a utilidade para a Justiça desse tipo de informação.

Liberdade de Expressão

Liberdade de expressão é outro conceito difícil de definir. Até o momento em que ele é removido.

O Brasil é um dos países que mais patrulha o conteúdo do que é publicado na Internet. Uma simples notificação do potencial ofendido e o servidor de hospedagem remove do ar conteúdo que supostamente seria difamatório ou violaria os direitos autorais. É um país onde ainda se discute se uma biografia pode ser publicada ou não, por exemplo. Por diversas vezes, foi determinado que o YouTube ou o Google ou o Facebook tirasse do ar determinado material que seria ofensivo para alguém, sob pena de multas altíssimas.

Liberdade

O que o Marco Civil da Internet irá fazer é regulamentar isso. Tanto as leis de calúnia, difamação e direitos autorais permanecerão inalteradas e seguirão determinantes para estes casos. Mas aquele “telefonema”, aquela “ameaça”, aquele “e-mail de uma pessoa importante” não será mais fundamental para que algo seja removido da web. O projeto aprovado pelos deputados isenta o servidor da responsabilidade daquilo que é praticado por seus usuários. Se não é permitido violar a privacidade dos clientes, como os provedores poderiam ser responsáveis, afinal das contas?

Na prática, o provedor de hospedagem ou de acesso não será obrigado a fazer nada até receber uma ordem judicial. Ou seja, acabou aquela situação onde o provedor, por temer um processo, toma a iniciativa de tirar um site do ar sem dar o direito de ampla defesa ao acusado. Mas, liberada a ordem judicial, o provedor de hospedagem deve acatar dentro do prazo estipulado ou sofrer as sanções cabíveis.

No papel, as novas regras parecem um avanço na defesa da liberdade de expressão. Porém, em casos de pouca repercussão, como provedores de cidades pequenas, ainda deve valer a força política ou econômica do acusador. Nos grandes casos, principalmente envolvendo empresas estrangeiras,  já impera desde muito tempo a regra da ordem judicial.

Neutralidade

Em seus primórdios, a World Wide Web foi criada para ser uma rede de computadores que permitiria o livre tráfego de dados entre si. Com pouca ou nenhuma interferência dos Estados, essa rede foi crescendo, se tornando cada vez mais importante e deixando de ser uma ideia nascida nos meios acadêmicos para se tornar uma supervia de comércio eletrônico e serviços. Neste instante, a neutralidade inicial, onde nenhum sistema teria preponderância sobre outro, bateu de frente com outro conceito: a Lei de Mercado, onde o mais forte prevalece e o mais fraco sucumbe.

Tomemos a história do YouTube. A startup surgiu com uma ideia inovadora de oferecer vídeos e muitos vídeos para a Internet, com uma interface simples e streaming aceitável. A Microsoft lançou um serviço similar. O Google lançou um serviço similar. Por oferecer melhor qualidade para os usuários, YouTube derrubou a concorrência, foi comprado pelo Google (que desistiu de competir) e o resto é história. Esse case de sucesso só foi possível porque a Internet é indiferente, neutra, para aquilo que você escolhe assistir.

Se a Internet não fosse neutra, provedores de acesso poderiam decidir que o tráfego do YouTube é muito pesado, está prejudicando a velocidade dos seus usuários e, portanto, deve ter sua banda limitada. O resultado seria um serviço lento, de pouca utilidade e que não seria nada atrativo para os visitantes. “Esse YouTube é um lixo, não carrega nada”, diriam. Enquanto isso, a Microsoft, por exemplo, poderia negociar com os provedores para que seu serviço de streaming não sofresse o mesmo tipo de tratamento em troca de um investimento substancial. Entre o YouTube, que não carregaria nada direito, e o Microsoft Videos, bem veloz, qual venceria a concorrência? O de melhor qualidade ou aquele com mais capital para investir?

Parece um cenário fictício? A Netflix acaba de assinar um contrato com o provedor americano Comcast para garantir a velocidade do acesso para todos os assinantes. Quando o Facebook se oferece para pagar seus acessos junto às operadoras de telefonia celular, está fazendo a mesma coisa: ferindo a neutralidade da Internet.

Mas, isso é ruim? “Eu quero Facebook de graça, sem pagar pelo pacote de dados!”, você pode dizer. Enquanto isso, uma hipotética rede social superior, sem bilhões de dólares para gastar, pode estar fechando ali do lado.

Esse limite entre o que o Estado deve regular e onde ele não deve se intrometer é um dos maiores embates do mundo moderno, dividido entre liberais e conservadores, esquerda e direita. Deve o mercado se auto regulamentar e fazer valer a lei do mais forte ou o governo deve garantir a mínima igualdade de condições? Seu bolso deve determinar o que você pode acessar ou não? As operadoras podem escolher o que você irá ver ou consumir?

redes sociais

Com a aprovação do Marco Civil da Internet, fica determinado que os provedores de acesso não podem fazer distinções no tráfego de dados em suas redes por conteúdo, origem, destino ou serviço, tratando todo tipo de dado da mesma forma. Quer acessar o Facebook, mas não quer acessar o Twitter? A escolha é sua. Quer usar o Vimeo no lugar do YouTube? O preço não muda. Quer passar o dia inteiro no The Pirate Bay baixando “coisas”? Pode. Não deveria, mas pode. Quer só checar o e-mail de vez em quando e nada mais? Vai pagar o mesmo que aquele jogador inveterado que só larga o World of Warcraft pra dormir.

Na prática, a Internet irá permanecer neutra, como já é em 99% do tempo. É em nome da neutralidade que o criador da World Wide Web elogiou o Marco Civil da Internet.

Curiosamente, foi necessária uma intervenção governamental para assegurar que não haja interferências na Internet.