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FreeDOS: a iniciativa que não deixa o DOS morrer

Em uma era em que o computador cabe na palma da mão, com bilhões de cores, abas e janelas multitarefa, nem todo mundo se lembra de quando letras brancas em uma tela negra foram o padrão que fez nascer uma indústria.

Para muitos, o DOS foi um degrau deixado para trás, mas ele ainda está vivo e tampouco tem data para acabar, graças a um projeto que está prestes a completar 25 anos de existência, sem qualquer fim lucrativo: o FreeDOS.

Um ponto de luz na escuridão

Tudo começou na IBM, nos corredores herméticos de seus mainframes, para depois ser adaptado para os computadores pessoais como um sistema operacional básico, conhecido como PC-DOS. Onde PC era “computador pessoal” e onde DOS significava exatamente Sistema Operacional do Disco. A IBM não era famosa por seu departamento de marketing…

Então, entra em cena a Microsoft, que pega o PC-DOS para criar seu MS-DOS, uma implementação paralela da mesma base, a partir do  86-DOS, para obter compatibilidade com os PCs desenvolvidos com as especificações da IBM. Mal sabia essa última empresa que o foco  da indústria estava saindo do fabricante de hardware e indo para quem controlava o software.

Era 1981 ainda, mas um ano depois o MS-DOS já teria sido licenciado para mais de 70 fabricantes diferentes e 12 anos depois não somente a Microsoft ocuparia uma posição de liderança no mercado como também as diferenças entre o PC-DOS e o MS-DOS se tornariam irreconciliáveis.

Foi uma decisão tomada pela Microsoft em 1994 que inicialmente parecia uma sentença de morte ao vetusto sistema operacional mas, na verdade, acabaria garantindo sua longevidade.

Jim Hall ao resgate

Com o lançamento do Windows 95, a gigante de Seattle revelou que o desenvolvimento do MS-DOS como sistema operacional independente seria suspenso, assim como suas vendas.

Enquanto a interface gráfica com janelas evoluía, era óbvio que a empresa estava indo por um caminho sem volta e o ancestral sistema que havia trazido a Microsoft até ali não tinha mais espaço e seria confinando às entranhas do seu novo e reluzente sistema por mera questão de compatibilidade. A cada nova versão do Windows, o MS-DOS era relegado a um segundo plano cada vez mais escondido, até a chegada do Windows XP e sua extinção oficial como alicerce de um Windows.

Mas antes que esse cenário se instalasse, o estudante de Física da University of Wisconsin-River Falls, Jim Hall, publicou um manifesto conclamando desenvolvedores a tomarem as rédeas do DOS e manter sua chama viva. Em entrevista, ele revelou sua principal motivação:

Havia rumores da Microsoft de que eles estavam planejando acabar com o MS-DOS e substituí-lo pelo Windows. (Essa era, é claro, a promessa do Windows 95.) Quando a Microsoft anunciou que abandonaria o MS-DOS em favor do Windows, ele acertou os usuários do DOS. Nós não queríamos desistir do DOS. Eu notei perguntas em newsgroups como comp.os.msdos.misc perguntando se havia alguma outra alternativa do DOS.

(…) Nos grupos de notícias do DOS, as pessoas começaram a perguntar se alguém tinha começado um DOS livre, algo semelhante ao Linux, que já era popular em muitos campi universitários … Por alguns meses eu vi a mesma pergunta nos newsgroups: ‘existe um DOS livre que eu possa baixar?’. Ninguém tinha respondido a pergunta, o que implicava que não havia tal coisa como um DOS livre.

As respostas o motivaram a dar início ao que se chamava Public Domain DOS (ou PD-DOS). Poucos meses depois, entretanto, o projeto mudava de nome para FreeDOS, para refletir a posição de lançar um sistema operacional sob a GNU General Public License.

Com a ajuda de outros programadores, Hall lançaria o primeiro beta 0.1 do FreeDOS em Março de 1998.

Jim Hall, 2014

Evolução do imutável

O desenvolvedor não sabia ainda, mas seu nome estaria atado ao projeto FreeDOS por mais de duas décadas, cuidando com zelo de cada evolução de um sistema operacional projetado para não mudar. Hoje em dia, Jim Hall não apenas cuida de sua obra mais antiga, como também é membro do quadro de diretores do GNOME, criador do GNU Robots e participante de diversos outros projetos da comunidade open source.

Sua dedicação levaria ao lançamento do FreeDOS 1.0 em 2006, mais de dez anos depois de sua concepção inicial. Tão logo esse marco do sistema operacional foi disponibilizado para todos os usuários, a pergunta inevitável era: para onde ir a partir dali? Afinal, o que teria acontecido com o DOS se a Microsoft não tivesse abandonado o sistema? Seria possível para a comunidade de entusiastas resolver esse dilema?

Blinky, mascote oficial do FreeDOS

A versão 1.1 veio com pouquíssimas mudanças em 2012, mas seus desenvolvedores já estavam divididos sobre o futuro. Muitos queriam um FreeDOS 2.0 e avançar em direções inimagináveis nos distantes anos 80. O próprio Hall era um daqueles que desejava aproximar o sistema operacional do que havia acontecido com o Linux e modernizar sua criação. Uma das propostas era inclusive assimilar elementos do Unix e atrair desenvolvedores para um sistema que seria compatível tanto com o antigo MS-DOS quanto com o Linux.

Mas Hall voltou atrás: “ficou claro para mim que esse conceito de ‘DOS moderno’ não era mais o DOS. O DOS é e sempre foi concebido para ser um sistema operacional simples. O DOS não é tão complicado. É isso que torna o DOS tão atraente; a sobrecarga é pequena, é fácil de aprender e é rápido de configurar e funcionar”.

Idéias como multitarefa, suporte a 32-bits ou a capacidade de rodar em dispositivos ARM foram descartadas. Não era para isso que o FreeDOS tinha sido criado. A última versão do sistema operacional (até o momento), seria lançada em dezembro de 2016, o FreeDOS 1.2. Ele traria um instalador mais evoluído e customizável, mas seria, em sua essência, o mesmo projeto que havia sobrevivido por tantos anos antes, trazendo apenas algumas evoluções de pacotes agregados.

Ainda assim, isso não significa que o FreeDOS não tenha ido onde a Microsoft não quis ir: há avanços que o distinguem do MS-DOS, mesmo sem perder a compatibilidade. Ao contrário de seu antecessor na época, o FreeDOS tem suporte a multi-boot com o Windows; suporte a 7ZIP e InfoZip;  um navegador web de modo gráfico, batizado de ARACHNE, incluindo cliente de email; driver de mouse com suporte a rolagem; suporte ao sistema de arquivos FAT32; suporte a drives de DVD e muitas outras características.

Sobre o futuro, Hall não tem mais dúvidas: “FreeDOS é simplesmente DOS, e irá permanecer assim”. O FreeDOS 1.3 tem previsão de lançamento para janeiro de 2019, no ano em que o projeto completa 25 anos.

Por que DOS?

Mantendo sua simplicidade, o FreeDOS pode ser instalado em qualquer computador Intel 86 ou melhor, com um mínimo de 2MB de memória RAM e somente 40MB de espaço no disco. Somente esses requisitos mínimos já responderiam a razão da sua existência: é um sistema operacional capaz de rodar em PCs que estão obsoletos a décadas.

Entretanto, o público alvo da iniciativa vai além de colecionadores que desejam ver seus antigos PCs funcionando. Segundo Hall, existem ainda três categorias de pessoas que são usuárias do FreeDOS: jogadores que procuram rodar jogos antigos em suas plataformas originais, empresas que ainda dependem de aplicações legadas dos anos 80 e 90 e desenvolvedores construindo sistemas embarcados.

Embora comunidades e serviços como o GOG tenham realizado milagres atualizando jogos do passado para rodarem em sistemas modernos, seja editando o próprio programa ou encapsulando seu funcionamento dentro de emuladores, o FreeDOS oferece uma alternativa prática e quase infalível para jogos criados para o MS-DOS. Para todos os efeitos, FreeDOS é DOS e jogos como o Doom clássico rodam perfeitamente no sistema operacional, dispensando ajustes. “A popularidade dos jogos DOS e dos aplicativos shareware do DOS provavelmente contribuem de forma significativa para o sucesso contínuo do FreeDOS”, explica Hall.

Entre as empresas que ainda usam programas legados da antiga plataforma, destaca-se a equipe de Fórmula 1 McLaren, que até mesmo reserva uma seleção de laptops antigos para a tarefa de rodar uma interface entre seus carros e um software baseado em DOS. A ferramenta de atualização de firmware dos modernos drives SSD da Intel carrega o kernel do FreeDOS. A ferramenta de manutenção de discos rígidos Spinrite também utiliza o FreeDOS, quando reinicia o PC e começa suas tarefas.

E sobre seu apelo para toda uma geração de desenvolvedores, Hall aperta a tecla da nostalgia: é o sistema operacional com que muitos começaram suas carreiras, fosseprofissionalmente, fosse por hobby. “Você podia mexer no DOS, usar o sistema BASIC embutido (como o GWBASIC) para escrever programas simples: jogos ou pequenos utilitários para ajudá-lo a fazer o seu trabalho. DOS era fácil de configurar, fácil de trabalhar”. Essa relação permanece inalterada com o FreeDOS.

Entretanto, isso não significa que esse é um sistema operacional para a turma do cabelo grisalho, presa no passado: “nós damos as boas vindas a qualquer pessoa que queira usar o FreeDOS”, saúda seu idealizador. “Você não precisa ser um desenvolvedor ou especialista em DOS; se você estiver interessado em usar o FreeDOS, ficaremos felizes em ter você”, completa.