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Influenciadores digitais que não existem

Em 1985, o influenciador digital Max Headroom estreava um longa-metragem na televisão britânica que estava muito à frente do seu tempo em todos os sentidos. O carismático mas estranho apresentador era uma Inteligência Artificial que se manifestava através de um avatar gerado por computador, com voz sintetizada afetada por bugs mas uma personalidade singular. Em seu filme, Max Headroom era a voz da razão em transmissões piratas em uma distopia em que as redes de televisão controlavam o destino da sociedade. Era o momento de ebulição do movimento cyberpunk nas artes, um nervoso prefácio do que a tecnologia poderia oferecer ao mundo se as relações sociais de poder não fossem alteradas.

Ironicamente, Max Headroom era uma farsa inclusive em sua concepção. Em 1985, não havia a tecnologia necessária para, de fato, criar o personagem através de computação. Max Headroom, na verdade, era o ator Matt Frewer debaixo de uma pesada maquiagem que levava horas para ser preparada. Em cima de sua filmagem eram acrescentados alguns efeitos especiais para aumentar a sensação de que ele era um ser digital, mas tudo ali era analógico, com a exceção dos padrões de fundo, esses sim gerados com a CGI disponível na época.

E Max Headroom virou uma espécie de ícone da contracultura digital. Ele ganhou uma série televisiva com duas temporadas com a mesma proposta do longa original, assim como um programa de TV entremeado de videoclipes, entrevistas e até mesmo a presença de uma plateia. Além disso, o personagem foi garoto-propaganda de um novo sabor de Coca-Cola, ganhou um jogo eletrônico, uma revista em quadrinhos em 3D e foi referenciado em diversas obras.

Max Headroom foi o primeiro "influenciador" virtual

Em um ciclo completo de metalinguagem, o anárquico Max Headroom apareceu em duas transmissões piratas de televisão em Chicago, nos Estados Unidos, no dia 22 de novembro de 1987. Durante 25 segundos no primeiro caso e 90 longos segundos no outro, a transmissão normal de emissoras locais foi substituída pela figura de um cibercriminoso utilizando uma máscara de Max Headroom, ao som de críticas ao sistema distorcidas digitalmente. Os envolvidos nunca foram identificados.

Todo o impacto cultural de Max Headroom e sua análise crítica aparecem no documentário independente On Max Headroom: The Most Misunderstood Joke on TV. Porém, é importante destacar uma citação de seus autores:

Max foi projetado por mentes criativas da Grã-Bretanha que insinuaram descaradamente que os americanos sempre adorariam as celebridades, mesmo que fossem feitas assim, agissem assim e tivessem essa aparência. E nós, o público americano, não apenas deixamos de entender a piada, como a colocamos na frente de comícios com faixas vermelhas para anunciar refrigerante. Porque é claro, nós fizemos.

Mais de 35 anos depois, continuamos não entendendo a piada enquanto os filhos e netos de Max Headroom se preparam para tomar o terreno estéril da era da Pós-Verdade.

Influenciadores de CGI

Miquela Souza é descendente de brasileiros, tem 19 anos e 3.1 milhões de seguidores em sua conta no Instagram. Miquela Souz terá 19 anos para sempre ou pelo menos até o dia em que se apagarem as luzes das redes sociais ou seus criadores decidirem que ela se tornou cringe demais para uma nova geração de usuários. Também conhecida como Lil Miquela, ela é uma fabricação que surgiu em 2016 na internet, um simulacro em 3D que não habita o mundo real mas nele exerce influência.

Ela é fruto da startup de publicidade Brud. Eles se definem como uma empresa que cria mundos e desenha narrativas. A honestidade gritante não parece afetar em nada a popularidade de seus produtos (sim, no plural). Não há um único traço de questionamento naquilo que fazem e seu storytelling é mantido até as últimas consequências. Em entrevista para o Estadão, em 2019, Miquela afirma: ” as palavras que mais machucam são ‘você não é real’. Me sinto tão diferente de todos os que me rodeiam que preciso gastar tempo e energia me convencendo de que EU SOU real e que meus pensamentos e sentimentos são válidos. É isso que evita que eu tenha um colapso total”.

Acredite ou não, Lil Miquela também é cantora e modelo. Ela possui quase 400 mil ouvintes no Spotify, sua música está sendo vendida no Amazon Prime Original. Além disso, ela já estrelou “lado a lado” com a modelo de carne e osso Bella Hadid para uma campanha da Calvin Klein e “apareceu” nas passarelas em um desfile da Prada. Marcas como YouTube Music e Samsung já associaram suas imagens com a da influenciadora digital. Ela faz parte da lista das 25 pessoas mais influentes da internet, publicada pela revista Time em 2018, lado a lado com Donald Trump e Kanye West.

Miquela Souza está longe de estar sozinha nesse mercado (inclusive são frequentes as colaborações com outras divas virtuais). Dos mesmos criadores, existe Bermuda, que já representou marcas do nível de Porsche e Venmo nas redes sociais. Bermuda e Miquela foram palco de um imbroglio digno dos tabloides de fofoca em 2018, quando as duas trocaram farpas na internet. Seu crescimento maior aconteceu nesse período, enquanto uma multidão acompanhou a falsa briga entre dois bots gerenciados pela mesma equipe de mídia social.

Shudu tem modestos 280 mil seguidores no Instagram, mas já apareceu nas páginas de importantes revistas de moda, como Cosmopolitan e Vogue, e traz consigo um fator vital nessa indústria: uma impressionante taxa de engajamento de 5% em suas postagens, sempre promovendo marcas ou estilos de vida.

Influenciadora digital Noonoouri

Noonoouri, por sua vez, sequer busca uma verossimilhança com a realidade, mas já alcançou o volume de 380 mil seguidores no Instagram, inclusive a simpatia da celebridade real Kim Kardashian, que a convidou para ser representante de sua marca de produtos de beleza. A exótica entidade virtual também tem contratos com Valentino, Versace e Dior.

A estimativa é de que o mercado de influenciadores movimente 15 bilhões de dólares em 2022. É um mercado valioso demais, emergente demais, para depender tão somente da espontaneidade ou mesmo aparência de seres humanos e suas limitações. Miquela Souza, eternamente jovem e glamorosa, arrecada cerca de 10 milhões de dólares ao ano de formas que fariam Max Headroom revirar os olhos.

A partir do momento em que a tecnologia nos permite gerar, através de algoritmos, rostos cada vez mais indistinguíveis do concreto, manipulações convincentes e até mesmo lugares que nunca existiram, é fácil imaginar que chegamos tão somente no limiar de uma experiência ao mesmo tempo fascinante e assustadora.

Influenciadores de carne e narrativas

Carmen é uma influenciadora fictícia

Entretanto, ser um punhado de pixels, uma coleção de polígonos salvos em um arquivo ou mesmo um algoritmo de identificação de tendências são apenas a fração mais cyberpunk de uma tática que já existe desde tempos imemoriais: a mentira vende e a mentira bem contada vende ainda mais. Personalidades fake não são novidade na indústria do entretenimento, onde bandas podem ser fabricadas, vozes podem ser alteradas em estúdios, rugas podem ser escondidas com computação ou maquiagem e onde o ghost writer é uma profissão como outra qualquer.

Porém, estamos falando aqui de redes sociais, esse fenômeno já tão entranhado em nossa cultura digital, que não dá mais pra chamar de tendência: esse ecossistema competitivo movido pelo imaginário se tornou a cultura digital. E, desde que o mundo digital existe, as pessoas se escondem atrás de avatares, contas fake existem e bots respondem por uma parte considerável do tráfego da internet.

Nesse cenário, é exemplar o caso de @sydneyplus, uma TikToker que viralizou apresentando dicas de como detectar ciladas em aplicativos de relacionamentos. Sydney tem 20 anos, trabalha no atendimento ao cliente de um famoso aplicativo de relacionamento, tem informação privilegiada lá de dentro, mas tem uma vida frugal, dormindo no sofá da casa da sua irmã. Exceto que nenhuma palavra da frase anterior é autêntica: Sydney não existe, é invenção de um coletivo de escritores, com a ajuda de uma atriz, que trabalham para uma agência de mídia digital chamada FourFront. Não foi preciso modelo 3D e muito menos Inteligência Artificial para transformar “Sydney” em uma influenciadora, apenas um bom “storytelling”, o jargão utilizado no ramo para a boa e velha “conversinha”.

Desde o sucesso de Sydney, a FourFront já criou 22 “narrativas”, envolvendo diferentes personagens, como um “reality show” sem a parte do “reality”. No caso de Sydney, ela teria descoberto que o noivo da irmã estava pulando a cerca e, por conta disso, tomou para si a tarefa de alertar outras mulheres sobre sinais de que seu namorado ou paquera não está dizendo a verdade. A ironia da situação escapa completamente a seus criadores ou seu público. Ou os investidores, que já injetaram 1,5 milhão de dólares na startup.

Entre as criações da FourFront estão a loura fatal Carmen, que se descreve como uma caçadora de homens; o edificante Chris, veterano do Exército norte-americano e pai dedicado; e  Ollie, um homem transgênero que descobre que seu pai também fez a transição; entre outros. É perceptível que a agência busca atingir um público diversificado. Nenhum desses personagens, associados ou conhecidos é real, nenhum deles é sequer inspirado em pessoas reais. São histórias e vidas inventadas em mesas de reunião, mas cujas contas alcançam centenas de milhares de pessoas todos os dias. No total, esse “universo ficcional compartilhado” agrupa quase dois milhões de seguidores e acumula quase trezentos milhões de visualizações.

Chris é uma influenciador fictício

De acordo com a FourFront, a maior parte do seu público está consciente de que as histórias são inventadas, de que os influenciadores são atores. Entretanto, essa é uma afirmação que não foi averiguada até o momento com qualquer tipo de metodologia. Navegando pelos comentários dos vídeos, é fácil perceber que uma parcela majoritária do público interage com os personagens da mesma forma que interage com pessoas normais, dando conselhos e até mesmo compartilhando situações semelhantes que viveram.

A relação entre a audiência da FourFront e suas criações cruza uma linha bastante definida a partir do momento em que a empresa oferece (e incentiva o uso de) um aplicativo de mensagens customizado que permite que os fãs mais devotados entrem em contato privado com os personagens e “desbloqueiem segredos” de suas vidas. Uma Inteligência Artificial baseada em GPT-3 responde em tempo real e o feedback dos usuários é utilizado para retroalimentar o aprendizado de máquina. Esse conteúdo, esse farto material de dados privados, é acessado pelos roteiristas para melhorar as narrativas.

Influenciadores inalcançáveis

Vivemos portanto a legitimação do falso, em que a narrativa se torna mais importante que os fatos e a câmara de ressonância dentro de bolhas isoladas é o novo Mito da Caverna. Se a história me agrada, ela é verdade. Se ela me desagrada, ela é inventada. E isso vale para qualquer espectro político, inclusive o suposto neutro, cada um agarrado a ilusão que lhe causa mais conforto ou melhor afasta seus medos.

Entretanto, toda essa irrealidade traz consequências. Fatos continuam imutáveis e o choque entre aquilo que se espera da realidade e aquilo que ela, de fato, inexoravelmente, é pode ser insuportável para gerações de usuários condicionados a viverem virtualidades.

Nesse exato momento, o Instagram está sendo investigado pelo governo dos Estados Unidos pelos efeitos nocivos que a plataforma exerce sobre a auto-imagem de adolescentes. Documentos internos da própria Meta constataram com pesquisas que a perfeição artificial imposta pelos padrões de vida e filtros do aplicativo estavam afetando negativamente a percepção das meninas sobre seus próprios corpos. Esse mesmo levantamento foi ignorado e abafado pelas lideranças dentro da Meta.

Afinal, como competir com personagens digitais ou celebridades que tem acesso a recursos tecnológicos ou cosméticos, com influenciadores que contam com equipes de assessores para simular uma realidade inatingível? Décadas se passaram e a distopia cooptou Max Headroom para sua linha de frente.