No mês passado, depois de um longo e doloroso desenvolvimento, o jogo independente That Dragon Cancer chegou às lojas. Ao contrário de outros títulos, ele não traz ação desenfreada ou mesmo um final feliz. Mas contém heróis e uma batalha que não pode ser vencida. Ele conta a história do pequeno Joel Green e sua luta contra o câncer.
Joel deu seu último suspiro em 13 de Março de 2014, quase dois anos antes do jogo ficar pronto. Com muito esforço, um título que deveria ser um retrato do tratamento contra o câncer, uma visão crua mas esperançosa do horror de se conviver com essa doença em tão tenra idade e do impacto causado em toda a família, se transformou em uma espécie de catarse e um desafio para ser concluído. Ryan Green, seu pai, o programador e criador do jogo, não desistiu do jogo. Continuar o desenvolvimento de That Dragon Cancer era não desistir das memórias.
Esta batalha viverá por mais tempo, virtualmente eternizada na forma de um jogo. Ainda que em pixels e lembranças, Joel Green permanecerá.
Vida e morte não são totalmente estranhos ao mundo dos jogos, seja em produções AAA ou títulos independentes. O desejo de permanecer é inerente ao Homem. Um dos caminhos para a permanência é a memória dos que ficam. Neste ponto a Arte oferece um excelente veículo de perpetuação, mesmo que ninguém tenha descoberto até hoje quem foi Gioconda. E, como Arte, os jogos vem se prestado a esse papel aqui e ali.
Guardião Eterno
Durante sua juventude, o jogo de RPG para computador Diablo foi um dos raros títulos que John Hathway conseguia desfrutar ao lado do seu pai. Conhecendo os gostos do velho Lee Hathway, John foi um dos patrocinadores do financiamento coletivo do jogo Grim Dawn.
Ele acertou na mosca: desde que seu pai ativou a chave do jogo até quase seus últimos dias, ele jogava diariamente. Lee Hathway se tornou o tipo de jogador que veste a camisa, que acompanhava os fóruns e chegava a apagar seus personagens quando uma nova funcionalidade era introduzida no jogo, apenas para experimentar tudo de novo do zero, sempre como soldado.
Atravessando gerações, seu gosto pelo jogo também se tornou um elo de ligação com o neto, que gostava de ver o avô jogando Grim Dawn no computador.
Mas o câncer, esse implacável vilão, também levaria Lee Hathway. Na primeira vez em que precisou ser internado às pressas por complicações da doença, ele deixou o computador ligado e logado no jogo. Havia terminado de enfrentar uma grande quantidade de inimigos, mas não havia chegado no ponto de poder salvar seu progresso. Não queria perder nada. Ficou uma semana no hospital e seu filho chegou a perguntar se poderia dar uma passada na casa e terminar a missão. Lee Hathway se negou terminantemente. Ele sairia daquela cama de hospital e terminaria a aventura com suas próprias mãos e foi o que fez.
Foi a última aventura de Lee Hathway, também conhecido como Zedlee no mundo virtual do jogo. Nunca mais logou em Grim Dawn, suas internações se tornaram cada vez mais frequentes. Mas com um tablet, ele continuava acompanhando os fóruns do jogo, ansiando pelas novidades que não poderia jogar.
Em 2 de Novembro, menos de 8 dias antes de completar 65 anos, Lee Hathway sucumbiu para o câncer no pulmão.
Seu filho, que havia financiado o jogo, contou sua história nos fóruns de Grim Dawn, o mesmo espaço onde seu pai fora feliz em seus últimos dias: “será sempre uma das minhas mais felizes memórias dele e eu devo à Crate (desenvolvedora do jogo) por basicamente ter criado o jogo perfeito para o meu pai”. A dedicação e a paixão de Lee Hathway chegaram aos ouvidos dos desenvolvedores do jogo menos de uma hora depois.
Kamil Marczewski, um dos designers responsáveis por Grim Dawn, respondeu: “obrigado por compartilhar esta história conosco. É realmente inspirador ouvir que nosso trabalho possa tocar uma pessoa dessa forma. Nós estamos gratos que nós pudemos iluminar os últimos dias de seu pai”.
Em gratidão e memória, a Crate transformou o soldado Zedlee em um integrante permanente do jogo, um guardião imortal da cidade de Homestead, para sempre.
A imagem agora é o fundo de tela do PC de John Hathway. Ele joga Grim Dawn ao lado dos seus três filhos. Como soldado.
Luz Que Não Se Apaga
Jogos sobre mortos que retornam à vida são tão comuns que é impossível não ter um semestre em que um novo título não seja lançado ou anunciado. Mas Dying Light foi o último jogo e a última luz no final do túnel de David Acott.
O adolescente de 17 anos gravou em 27 de Fevereiro do ano passado um vídeo para seu canal do YouTube onde abria a caixa do jogo, que vinha esperando havia meses. Em 3 de Março, gravou outro vídeo onde anunciava que estava lutando contra uma forma rara de câncer e estava sendo internado. Apesar do abatimento visível, seu rosto se iluminou diante dos planos que tinha para o jogo. Levaria até um guia de estratégia para ler no hospital. Em 11 de Março, faleceu.
Seu último vídeo chegou até a desenvolvedora Techland através de um amigo do rapaz um mês depois. E a desenvolvedora se recusou a acreditar que a história deveria terminar assim.
Com muito tato, a empresa polonesa entrou em contato com esse amigo de David para poder falar com a família que uma homenagem estava sendo preparada para o jogador falecido. Com a concordância da mãe, Janet Acott, a Techland preparou um mural de grafite que celebraria a vida e o entusiasmo do rapaz:
https://youtu.be/Atp5-SOcufI
Amigos do rapaz e outros jogadores viram o mural e enviaram vídeos e imagens do tributo para Janet. “Era como se fosse uma pequena luz nesse momento sombrio e triste. Nos deu algo para sorrir”.
E Janet resolveu devolver a gentileza. A americana pegou suas malas e seu outro filho Howard, companheiro de David em muitos jogos, e viajou para a Polônia. Para agradecer pessoalmente à equipe da Techland.
Ela levou um quadro com uma colagem de fotos de David, incluindo o mural virtual, para o escritório da Techland.
Memorial Digital
Joel Green, Lee Hathway e David Acott não estarão sozinhos nesse Valhalla digital.
Eles estarão acompanhados de Sean Smith, vulgo Vile Rat, diplomata dedicado em Eve Online, militar dedicado morto em um atentado contra a embaixada americana no Líbano. Eternizado por uma comunidade que muitos julgam ser cruel, sem saber. Lembrado pela então Secretária de Estado dos Estados Unidos Hillary Clinton durante o memorial oficial do governo às vítimas do ataque. No seu discurso, Hillary declara que Smith teria deixado “uma esposa amada, duas jovens crianças – Samantha e Nathan – e fileiras entre familiares, amigos e colegas…”. E cita com respeito sua atuação na comunidade de jogadores: “… e isto apenas neste mundo. Porque nos mundos virtuais que Sean ajudou a criar, ele também é velado por incontáveis competidores, colaboradores e jogadores, que compartilhavam sua paixão”.
Por Tina Wiseman, atriz, cantora, mãe, esposa e agora presença virtual em uma ilha tropical de Entropia Universe. Vítima de uma miocardite em 2004, seu avatar continuou ativo no jogo por três anos seguidos, até ser apagado pela desenvolvedora por razões contratuais. Mas seu noivo, o empresário virtual Jon Jacobs não permitiu que Tina também tivesse sua existência virtual descontinuada. Suas feições foram adaptadas para uma personagem que tem o dom da cura na ilha que Jacobs administra. Qualquer hóspede da ilha que venha a morrer nas imediações será imediatamente levado até o avatar de Tina e ressuscitado. Nas palavras de Taliesin, filho de Jacobs e Tina, “é muito bom ver o avatar porque é como se minha mãe ainda estivesse ali jogando o jogo”.
Eles estarão acompanhados por James Hand, também vítima de câncer. Ele teve sua efígie perpetuada como um soldado romano em um cerco infindável a Cartago em Rome: Total War II. Com sua doença diagnosticada como irreversível, James conseguiu realizar o sonho de visitar os estúdios da Creative Assembly, jogar a versão pre-alpha do título e opinar sobre a jogabilidade. Cientes do pior, os desenvolvedores escanearam seu rosto. James nunca viu a versão final ou a homenagem.
Roger Rall é outro jogador cujo nome agora faz parte da franquia que tanto amava. Participante assíduo de sua guilda no primeiro Guild Wars, sua morte repercutiu profundamente na comunidade. Cartas e e-mails foram enviados para a Arenanet pedindo uma homenagem. Em Guild Wars 2, o mundo Sanctum of Rall (Santuário de Rall) foi batizado em seu nome.
Michael Mamaril também foi levado pelo câncer, aos 22 anos. Fã incondicional de Borderlands, ao falecer em 2011, recebeu uma elegia da Gearbox Software e uma promessa de que faria parte da sequência do jogo. E a homenagem não poderia ser mais apropriada: Mamaril é agora um NPC valioso em Sanctuary, a base dos jogadores. A cada conversa com o personagem, é possível ganhar itens raros do lendário Vault Hunter.
Muito antes desses nomes, o suicídio de Bill Ilburg foi um acontecimento chocante. Mas sua vida como Lord Brinne em MMOs e membro ativo de fóruns de RPGs é o que será lembrado por uma geração de jogadores. Sua personalidade virtual era tão querida que Lord Brinne foi homenageado em Ultima IX, Might and Magic VIII, The Elder Scrolls III: Morrowind e Deus Ex.
Nenhuma destas homenagens pode acobertar a totalidade destas vidas que se apagaram. Nenhuma homenagem, por maior que seja. Qual era o brinquedo favorito de Joel Green? Qual era a opinião de Tina Wiseman sobre a vida e a morte? Por que “Lord Brinne” fez o que fez? Mamaril jogava com qual personagem? Poucos sabem as respostas e menos saberão na medida em que o tempo inexorável segue seu curso.
Porém, por menor que seja essa parcela que sobrevive, alimentada pelo carinho e pelo reconhecimento, ela carrega o todo até onde é possível carregar.