Nos últimos anos, o debate sobre o Metaverso parece dividido entre a visão utópica que promete finalmente entregar um sonho de décadas e o cinismo histórico de que essa iniciativa já foi tentada anteriormente sem sucesso e irá inegavelmente naufragar pelas mãos da Meta. Em novembro de 2021, perguntei: o Metaverso está vindo? Gostaria de abrir o ano de 2023 com outra pergunta: o metaverso é inevitável (assim mesmo, com minúsculas)?
Para responder essa pergunta se faz necessário separar os conceitos, entre a realidade digital que Mark Zuckerberg almeja e as aplicações práticas que já estão acontecendo agora. É necessário tirar a Meta do Metaverso e analisar tão somente a tecnologia e suas possibilidades, assim como a punção que nos levou a desenvolver essa mesma tecnologia. Não se trata de replicar a ágora romana ou a pracinha da vila com pixels e dispositivos fabricados por uma Big Tech, mas, novamente, sobrepujar os limites da natureza e tornar o ambiente mais controlável, algo que já fazemos desde que os primeiros primatas evoluídos bateram duas pedras para criar uma faísca.
Essa confusão talvez seja o principal obstáculo para o avanço do metaverso. Diferentes especuladores, diferentes teóricos, diferentes promotores oferecem explicações diferentes enquanto o público alvo trafega por definições que podem ser antagônicas. A confusão abre espaço para oportunistas que tentam agregar soluções para problemas que não existem, assim como incautos que investem tempo e dinheiro sem garantia de retorno, produzindo uma bolha lá na frente, como já aconteceu anteriormente com o nem tão distante Second Life. Então, o que é metaverso?
O metaverso que a propaganda te vende
O metaverso que a Meta propõe é uma reconstrução do espaço social. Todas as interações que acontecem entre as pessoas seriam transferidas para a Realidade Virtual, um jardim murado do qual a empresa controla o fabricante do dispositivo mais vendido. Do ponto de vista estratégico, é uma evolução natural para a Meta: um ecossistema para chamar de seu, onde a venda de espaço publicitário não seja regulamentada por outras gigantes da tecnologia. Como a Apple provou, ao colocar barreiras na exibição de propaganda em aplicativos no iOS, a Meta não é a dona de toda a cadeia de distribuição. Se o Google explorar o mesmo caminho, o faturamento da Meta em dispositivos móveis irá despencar para níveis insustentáveis. Portanto, a empresa precisa, literalmente, de uma nova realidade.
O Metaverso de Zuckerberg é portanto um Facebook 3D, em que avatares de bilhões de usuários trocam informações 24 horas. No lugar de curtidas e emojis, uma interatividade “olho no olho”, ainda que mediada pelo Oculus. No lugar de carrosséis de imagens, verdadeiras galerias tridimensionais. No lugar de imagem de capa, o usuário poderá customizar seu espaço com construções mirabolantes e decoração, um cruzamento tardio de The Sims e Minecraft. No lugar da efemeridade dos Stories, a perenidade de monumentos arquitetônicos, roupas estilizadas e outros símbolos de status possivelmente adquiridos com dinheiro do mundo real, para alegria dos adeptos de NFTs.
Em suma, o mundo 2.0. Apesar da longevidade do conceito na ficção científica, o que talvez contenha um desejo muito humano por esse cenário, há de se questionar se nossa biologia está preparada para uma existência dividida. Ainda que avatares sejam charmosos ou simpáticos, seguimos atados a nossas necessidades de ar fresco ou limitados pela carne que ensaia desconforto depois de um par de horas com os dispositivos acoplados no rosto. O quão claustrofóbica pode ser uma existência compartilhada com mundos irreais ou quão prejudicial para nossa saúde mental pode ser essa ruptura com o conceito de realidade? Reuniões chatas que poderiam ser um email se tornarão no futuro reuniões chatas com um aparelho grudado no rosto e a impossibilidade de se desviar o olhar ou dar aquela checada no Zap?
Nesse Metaverso estariam concentradas nossas interações cotidianas, mas também nossas oportunidades de entretenimento. Nesse último aspecto, esse metaverso já está acontecendo, seja nos servidores de Fortnite ou Roblox, que agregam milhões de usuários desfrutando de milhões de experiências em ambientes interconectados. Toda uma nova geração está crescendo habituada a ver esses espaços como uma área de lazer natural e dinâmica. É quase garantido que, se esse metaverso não funcionar agora com a Meta, ele estará praticamente garantido daqui a vinte anos quando essas crianças e jovens chegarem nos ambientes de desenvolvimento com essa naturalidade.
Com produções transmídia se tornando cada vez mais comuns, a convergência pode encontrar seu ambiente final no metaverso, como um lugar em que assistimos filmes, participamos de jogos ou consumimos outros produtos culturais sem sair da cadeira, saltando entre um container virtual e outro.
O metaverso que precisamos
Saindo dos delírios marqueteiros de Zuckerberg ou das distopias de vivência digital sete dias por semana, existe todo um campo de aplicação para o metaverso que passa por fora do hype: simulação de cenários.
Dominar o ambiente em que vivemos foi o que nos removeu das árvores e nos fez andar sobre duas patas, manipular objetos e, consequentemente, moldá-los de acordo com as nossas necessidades. Cada invenção humana, desde as primeiras ferramentas de pedra até o patinete elétrico surgiram de uma demanda, real ou artificial. As melhores invenções surgiram de obstáculos reais que precisavam ser ultrapassados. Se a natureza colocou um rio no caminho, esse rio será cruzado com uma ponte, ou desviado, ou aproveitado para geração de energia ou irrigação. Se o tempo está frio, matávamos animais para nos cobrir com peles que não nasceram conosco. Se o tempo está quente, hoje domamos compostos químicos complexos dentro de caixas embutidas nas paredes para “condicionar” o ar e esse termo não poderia ser mais adequado. A civilização surge do condicionamento do ambiente a nosso favor.
Sem entrar no mérito de que talvez tenhamos ido longe demais e o meio ambiente está em processo de degradação, a tecnologia surge como um complemento de uma estratégia que tem dado certo por milênios.
Desta vez, porém, temos a vantagem de testar invenções em ambientes controlados que sequer precisam ser reais. As Forças Armadas dos Estados Unidos já estão na vanguarda do desenvolvimento de seu próprio metaverso. Gigantes da indústria estão investindo milhões de dólares na criação de digital twins, representações virtuais de estruturas reais, para simular estudos de caso e testar possibilidades sem riscos, antes de transpor essas ideias para o mundo físico. Desta forma, uma empresa pode mudar a posição de maquinário no chão de fábrica, otimizando processos, quantas vezes quiser, até obter o resultado ideal, antes de mobilizar a mudança verdadeira. A indústria farmacêutica testa moléculas para sintetização de novos medicamentos em simulações que obedecem às mesmas regras do mundo real, mas onde seus pesquisadores são deuses com acesso a todas as possibilidades imagináveis. Anos de pesquisa podem ser reduzidos a uma fração desse tempo. Modelos em escala da Terra estão sendo criados para previsão de fenômenos climáticos, literalmente um mundo 2.0, para fins científicos.
Simulações fazem parte do processo de aprendizagem de qualquer ser vivo. Está presente nas brincadeiras aparentemente inocentes que filhotes de todas as espécies realizam. Naqueles joguetes inofensivos estão sendo desenvolvidas habilidades que serão essenciais para a sobrevivência mais tarde. A ludicidade foi incorporada ao processo de ensino em nossas escolas. A simulação evolui, das regras abstratas ou volúveis do faz-de-conta, para mundos digitais baseados em dados reais que reproduzem com o maior grau de fidelidade possível aquilo que será encontrado no mundo físico.
Desta forma, o metaverso é inevitável: um ambiente de aprendizado e simulação em que profissionais possam experimentar soluções que serão aplicadas no mundo real. Uma integração entre institutos de pesquisa, fabricantes, setores civil e militar, poderia gerar uma realidade digital compartilhada capaz de sobrepujar os sonhos mais febris de Zuckerberg ou os jogos mais sofisticados. Não será um playground para navegar com avatares de cartoon: existem interfaces de usuário mais precisas e eficientes. Porém esse poderá ser o motor por trás de inovações surpreendentes nas próximas décadas. E nem mesmo um eventual ocaso da Meta poderá alterar essa tendência.