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O que é o FLoC e como ele afeta sua privacidade na internet?

Federated Learning of Cohorts, ou ” Aprendizagem Federada de Coorte”, é um termo pomposo para se chegar em um acrônimo engraçadinho: FLoC. Engraçadinho porque é uma corruptela da palavra “flock”, que significa “rebanho” em inglês. Na tecnologia da informação, é a nova estratégia do Google para fins publicitários, para agrupar usuários em “rebanhos” de consumo supostamente menos identificáveis do que o velho cookie. Irá funcionar? Há quem diga que a proposta já nasceu problemática.

Em uma era muito distante, o Google surgiu como o mecanismo de busca para todos governar. Porém, oferecer os melhores resultados do mundo de graça para os usuários não sustenta um negócio. Na verdade, toda a capacidade de processamento de conteúdo e análise do contexto do Google o colocou em uma situação única: entender o que uma página tem a oferecer e entender que, se o usuário está ali, ele está atrás de determinado produto ou informação. Surgia assim o modelo publicitário contextualizado baseado no conteúdo dos sites.

O Google abdicou desse modelo em troca de outro mais lucrativo: publicidade focada no próprio usuário. Com uma pletora ainda maior de serviços (que incluem email, edição de documento, armazenamento de fotos e algumas redes sociais que não deram certo), o Google se viu outra vez em uma posição privilegiada: entender o que uma pessoa representa, seus gostos, seus hábitos e até suas necessidades. Surgia ali o atual modelo publicitário, empregado com eficiência cirúrgica não apenas pelo Google mas também pelo Facebook. A partir dessa ideia, o usuário passou a ser rastreado e identificado por cookies em qualquer canto da internet.

Em contrapartida, e com certo atraso, autoridades governamentais começaram a investigar o nível de rastreio empregado pelos gigantes da publicidade. Se você hoje navega pela internet com cada página perguntando se você aceita os cookies ou não é porque a União Europeia exigiu essa postura. É uma inconveniência gerada por uma necessidade real: Google, Facebook, Microsoft e outros, menor medida, armazenam quantidades colossais de dados pessoais que podem ser comercializados com terceiros menos criteriosos em seus usos.

O fim dos cookies?

Entra em cena o Federated Learning of Cohorts (FLoC), uma alternativa de rastreamento menos invasiva em que o usuário desaparece “no meio da multidão”, nas palavras do próprio Google. Através desse sistema, não seríamos mais identificados como indivíduos mas como integrantes anônimos de grupamentos de consumo. É interessante observar que esse enquadramento em perfis pré-definidos já existe. O que o Google está propondo é que empresas de publicidade e desenvolvedores de navegadores abandonem mesmo a identificação individual.

De acordo com o Google,  “para que a publicidade digital continue a ser o suporte econômico do ecossistema digital, o Google acredita que é necessário avançar na agregação, anonimato e processamento de dados no dispositivo, que oferecem alternativas eficazes para substituir os identificadores individuais”.

Ainda segundo a empresa, “as pessoas não deveriam ter que aceitar ser rastreadas na web para obter os benefícios de uma publicidade relevante. E os anunciantes não precisam rastrear consumidores individuais na web para obter os benefícios de desempenho da publicidade digital”.

O discurso é bonito no papel, mas o sistema FLoC foi ativado inicialmente, sem qualquer aviso ou termo de adesão, para 0,5% dos usuários do navegador Chrome no início do ano em uma espécie de fase de testes. Poucas regiões foram contempladas com esse tubo de ensaio, mas o Brasil está entre elas.

O Google defende uma taxa de eficiência de 95% em termos publicitários para o sistema e anunciou que irá empregar o modelo com força total nesse segundo trimestre. Não há uma opção clara para desativar essa transição. Para aumentar a adesão, o Google embutiu o suporte ao FLoC no motor Chromium, adotado por basicamente todos os navegadores do mercado. A impressão que se tem é que essa não é uma “proposta”, mas uma mudança obrigatória sendo empurrada com a típica força de uma corporação quase onipresente em nosso cotidiano digital.

Como funciona o FLoC

O site Web.Dev produziu uma explicação passo a passo de como o sistema opera, para usuários, anunciantes, donos de site e redes de publicidade.

Considerando-se por exemplo dois usuários, que chamaremos aqui de Alice e Rodrigo. A empresa anunciante é Loja de Sapatos. O site que irá disponibilizar o espaço publicitário seria o próprio Código Fonte. A plataforma de anunciantes é a Publicidade Inc. Então, teríamos:

1) Serviço FLoC

  1. O serviço FLoC usado pelo navegador cria um modelo matemático com milhares de “coortes” (ou “rebanhos”), cada uma correspondendo a milhares de navegadores com históricos de navegação recentes semelhantes.
  2. Cada coorte recebe um número.

2) Navegador

  1. Do serviço FLoC, o navegador de Rodrigo obtém dados que descrevem o modelo.
  2. O navegador de Rodrigo calcula localmente a qual “rebanho” ele pertence, usando o algoritmo do modelo FLoC para calcular qual dos existentes corresponde mais de perto ao seu próprio histórico de navegação. Em nosso exemplo, será o rebanho 1354. De acordo com o Google, o navegador de Rodrigo não compartilha nenhum dado com o serviço FLoC.
  3. Da mesma forma, o navegador de Alice calcula seu ID de coorte. O histórico de navegação de Alice é diferente do de Rodrigo , mas semelhante o suficiente para que seus navegadores pertençam ao rebanho 1354.

3) Anunciante: Loja de Sapatos

  1. Rodrigo visita lojadesapatos.com.
  2. O site pede ao navegador de Rodrigo seu rebanho: 1354.
  3. Rodrigo visualiza botas de caminhada na loja online.
  4. O site registra que um navegador do rebanho 1354 mostrou interesse em botas de caminhada.
  5. O site posteriormente registra interesse adicional em seus produtos do rebanho 1354, bem como de outros rebanhos.
  6. O site agrega e compartilha periodicamente informações sobre rebanhos e interesses de produtos com sua plataforma Publicidade Inc.

4) Produtor de conteúdo: Código Fonte

  1. Alice visita codigofonte.com.br.
  2. O site pede ao navegador de Alice seu rebanho.
  3. O site então faz uma solicitação de anúncio para sua plataforma Publicidade Inc, incluindo o identificador de rebanho de Alice: 1354.

5) Plataforma Publicidade Inc.

  1. Publicidade Inc pode selecionar um anúncio adequado para Alice combinando os dados que possui do editor Código Fonte e do anunciante Loja de Sapatos: Rebanho 1354 e “os navegadores do rebanho 1354 podem estar interessados em botas de caminhada”, respectivamente.
  2. Publicidade Inc seleciona um anúncio apropriado para Alice: um anúncio de botas de caminhada da Loja de Sapatos.
  3. Código Fonte exibe o anúncio.

Percebe-se que Código Fonte não teve acesso ao histórico de navegação de Alice ou Rodrigo, apenas recebeu do navegador a informação de que Alice pertence ao rebanho 1354. Da mesma forma, é importante perceber que, a princípio, Alice não demonstrou interesse em botas de caminhada, mas o sistema FLoC identificou que pessoas do rebanho 1354 podem ter interesse específico nesse produto, a partir de uma visita anterior de Rodrigo.

Ninguém comprou essa ideia…

Felizmente ou infelizmente, o Google está sozinho nessa iniciativa. Mesmo introduzindo o suporte ao FLoC no motor do Chromium,  Opera, Brave e Vivaldi já declararam que desativaram o recurso em seus navegadores. Sem meias palavras, os desenvolvedores do Brave alertam que “o pior aspecto do FLoC é que ele prejudica materialmente a privacidade do usuário, sob o pretexto de ser amigo da privacidade”. Os responsáveis pelo Vivaldi se juntam ao coro: “isso não protege a privacidade e certamente não é benéfico para os usuários ceder inadvertidamente sua privacidade para o ganho financeiro do Google”. O Opera foi mais seco em seu comunicado: “não temos planos para habilitar recursos como este nos navegadores Opera em sua forma atual”.

A Apple também garantiu que não irá seguir com o FLoC no Safari. Firefox, obviamente, tampouco aderiu e fez a crítica mais incisiva: “não acreditamos que o setor precisa de bilhões de pontos de dados sobre as pessoas, que são coletados e compartilhados sem sua compreensão, para veicular publicidade relevante”.

A Microsoft é a única empresa do mercado de navegadores que ofereceu uma resposta vaga sobre a questão: “o setor está em uma jornada e haverá propostas baseadas em navegador que não precisam de IDs de usuário individuais e propostas baseadas em ID que são baseadas em consentimento e relacionamentos de primeira parte. Continuaremos a explorar essas abordagens com a comunidade”.

A aparente diplomacia no campo das palavras da responsável pelo navegador Edge em relação ao FLoC é resultado do fato de eles também terem uma alternativa na mesa, chamada de PARAKEET. Em contrapartida, independente do discurso brando, o FLoC foi desabilitado no Edge.

Tem coisa errada aí?

Mais uma vez, coube à Electronic Frontier Foundation o alerta mais contundente sobre a iniciativa. A entidade que luta pelos direitos individuais dos usuários da internet por três décadas, classificou o FLoC como uma “ideia terrível“. Segundo a EFF, “a tecnologia evitará os riscos de privacidade de cookies de terceiros, mas criará novos no processo. Também pode exacerbar muitos dos piores problemas de não privacidade com anúncios comportamentais, incluindo discriminação e segmentação predatória”.

Um desses desafios é garantir que os antigos métodos de rastreamento e identificação de usuários sejam mesmo descartados. Não há qualquer certeza nesse sentido. Caso contrário, o identificador de rebanho periga se tornar mais um componente de um sistema de identificação pré-existente. Aqueles sites ou redes que acompanham seus usuários onde quer que eles vão (como o Facebook ou o próprio Google, por exemplo), terão em mãos uma ferramenta adicional para reforçar seus perfis.

“Isso significa que cada site que você visita terá uma boa ideia sobre o tipo de pessoa que você é no primeiro contato, sem ter que fazer o trabalho de rastreá-lo pela web. Além disso, como seu grupo FLoC será atualizado com o tempo, os sites que podem identificá-lo de outras maneiras também serão capazes de rastrear como sua navegação muda”, aponta a EFF.

A recomendação da entidade é que o Google adote a medidas que promete para a extinção de cookies de terceiros, mas sem implementar um modelo quase tão nocivo quanto em seu lugar. Na ausência de formas do próprio usuário controlar ou mesmo visualizar as informações que estão sendo obtidas, a única esperança para evitar o FLoC é realmente uma reação contrária do ecossistema e o próprio Google recuar na proposta.