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O que está por trás da febre dos patinetes por aplicativo?

Houve uma época em que um aplicativo prometia uma disruptura do modelo de mobilidade urbana, foi combatido com rigor pela legislação local e causou polêmica. Hoje, o Uber faz parte do cotidiano das principais cidades do mundo, para o bem ou para o mal. Essa revolução pode estar encontrando um novo capítulo com a chegada dos patinetes por aplicativo nos espaços públicos das mesmas cidades. O debate voltou a ser acirrado e fica a pergunta: como funciona esse modelo?

No Rio de Janeiro, duas empresas disputam o mercado da chamada micromobilidade e as calçadas. Uma delas é a Tembici, operadora dos Patinetes Petrobras, e a outra é a Grow, que é detentora das marcas Grin e Yellow. Em São Paulo, Grin e Yellow atuam no setor, com participação menor de outros nomes como Flipon e Scoo. Em ambas as capitais, o crescimento do serviço tem sido explosivo nos últimos meses. Embora números precisos sejam trancados a sete chaves nesse tipo de startup,  a Tembici confirma um aumento de 1268% no número de usuários, entre o início de suas operações na primeira semana de dezembro de 2018 até o final de abril deste ano. A Grow, por sua vez, já expandiu seus serviços para 14 cidades brasileiras e não para de crescer.

Para Milton Achel, diretor de relações com o governo da Grow, os patinetes por aplicativo vem suprir um nicho de mercado que não é atendido por nenhuma das soluções vigentes. Os aparelhos serviriam em distâncias “muito longas para se fazer a pé e muito curtas para tirar o carro da garagem”. E acrescenta: “os nossos fundadores colocam para gente que temos que ser uma solução para as cidades. Por isso estamos conversando bastante com a prefeitura. Acreditamos que a regulamentação potencialize o modal limpo de transporte. Esse modal é o patinete”.

De boas intenções, o inferno das startups, principalmente das startups de tecnologia, está cheio. Para essa utopia dos patinetes se concretizar, os seus idealizadores precisarão enfrentar dois desafios de grandes proporções: a legislação local e o próprio modelo de negócios.

A lei é dura mas é a lei

Em São Paulo, no início desse mês, centenas de patinetes foram apreendidos pela Prefeitura, por desrespeito às regras promulgadas sobre sua circulação. As autoridades municipais demoraram a acordar para o fenômeno, mas reagiram com rigor. Segundo dados da própria Grow, 1.500 veículos, de uma frota de 4.000, foram recolhidos por agentes públicos. No tela do serviço, foi publicada uma mensagem de “manutenção”.

“O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) tem de se atualizar porque nós estamos sendo atropelados por um monte de novidades”, declarou o secretário de Mobilidade e Transportes de São Paulo, Edson Caram. “A ‘micromobilidade’ está vindo para tomar conta da cidade, e nós precisamos de diálogo para sua regulação”. Enquanto uma regulamentação definitiva não chega, o prefeito Bruno Covas estabeleceu um decreto provisório com regras para todas as empresas do setor na cidade.

Entre os pontos apresentados pelo decreto, estão:

  • Empresas de micromobilidade por aplicativo devem ser cadastradas na Prefeitura.
  • Fica proibido que patinetes elétricos andem nas calçadas e em vias com velocidade máxima permitida superior a 40 km/h.
  • Os usuários de patinetes elétricos devem obedecer a normas de segurança no trânsito, utilizando capacete de proteção e circulando somente em ciclovias e ciclofaixas do município.
  • A velocidade do patinete deve ser limitada no próprio aparelho para um valor máximo de 20km/h.
  • As empresas que não cumprirem as regras do decreto poderão ser obrigadas a pagar uma multa que varia de R$ 100 a R$ 20 mil para as empresas.
  • Dependendo da infração cometida, o custo pode ser repassado ao consumidor.

A Prefeitura de São Paulo, em conjunto com 11 empresas de micromobilidade estuda uma legislação definitiva sobre o tema a ser implementada ainda em agosto desse ano.

No Rio de Janeiro, há um começo de movimentação por parte do setor público. O alerta foi disparado por profissionais de saúde, que viram um crescimento significativo nos casos de acidentes, principalmente fraturas, nas regiões onde os patinetes elétricos estão virando febre. Uma única unidade, o Hospital São Lucas, localizado em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro, registrou mais de 50 incidentes envolvendo os aparelhos entre janeiro e abril desse ano.

Ainda de acordo com o coordenador do Centro de Trauma do Hospital São Lucas, Paulo Silveira, esse número possivelmente é maior: “talvez seja um pouco mais que 50 casos nesses meses. Nós não temos esse número muito preciso porque nem sempre o paciente informa que aquela torção ou aquele trauma leve foi ocasionado por uma queda de patinete”. Segundo o médico, felizmente a maior parte dos casos envolve pequenas fraturas, torções, hematomas e escoriações e não há necessidade de internação.

A preocupação com a segurança não passa despercebida pelas empresas. Para a Tembici , “por se tratar de um modal novo, procuramos proporcionar o maior número de informações e orientações para os usuários, de forma a prevenir e reduzir o risco de lesões e acidentes”. A empresa sustenta que implementou uma estratégia de “disponibilizar promotores em todas as estações, onde os usuários recebem instruções sobre o funcionamento, respeito à legislação e ao pedestre. Também são oferecidos capacetes para os usuários, sendo recomendado o uso de joelheiras, cotoveleiras e luvas, embora seu uso não seja obrigatório”.

Uma conta que não fecha

Como a maioria dos serviços ditos disruptivos que buscam capitalizar investimentos e atender a uma demanda que não existia antes, a micromobilidade também guarda seus números a sete chaves. Especula-se que, assim como o Uber ou mesmo a Amazon em seus primórdios, esse tipo de operação funcione no vermelho, na expectativa de uma alavancada de fundos ou usuários no futuro.

Segundo dados apurados pela revista Quartz, a partir de informações tornadas públicas na cidade norte-americana de Louisville, nossa expectativa não está muito longe da verdade. Com regras duras sobre transparência, Louisvillenos oferece um microcosmos de como possivelmente funcionam as empresas de patinetes elétricos pelo mundo. A cidade é mercado da Bird, a empresa pioneira no ramo nos Estados Unidos, onde atua desde agosto de 2018.

Dados tornado públicos relativos à operação de 129 patinetes da Bird entre agosto e dezembro passado funcionam como uma amostragem que pode elucidar essa caixa-preta. De acordo com a Quartz, foi possível constatar que:

  • O tempo médio de vida de um patinete é de 28,8 dias.
  • O patinete que durou mais tempo permaneceu em operação por 112 dias.
  • Apenas 7 patinetes do total analisado duraram mais de 60 dias.
  • Em média, um veículo realiza 92 viagens e percorre cerca de 262 quilômetros durante sua vida útil.
  • São cerca de 3,49 viagens por dia por patinete.
  • A viagem média dura 18 minutos.

A própria Bird declara que cada unidade tem um custo médio de U$551, com uma meta de reduzir esse valor para US$360 no futuro próximo com novos parceiros fabricantes. Desta forma, nos valores atuais, seriam necessárias 5 viagens por dia, durante 5.25 meses para o aparelho pagar seu custo inicial. É fácil de ver que essa conta não fecha.

A Quartz foi além e calculou todos os valores. Com uma média de 18 minutos por viagem, somando todas as taxas pagas pelo usuário, cada utilização rende U$$3.70. Desse valor, podem se descontar os custos operacionais da Bird, incluindo carregamento de bateria, reparos, taxas da operadora de cartão de crédito, atendimento ao cliente e seguro. Desta forma, cada viagem tem um custo calculado de US$2.75. O lucro de cada viagem é de apenas US$0.95, uma cifra que é tão insignificante quanto parece. No final do dia, com uma média de 3,49 viagens, cada unidade está rendendo U$2.32 para a Bird, após o desconto de uma taxa diária de utilização da Prefeitura.

Faturando US$2.32 por dia durante 28,8 dias, cada patinete retorna aos cofres da startup somente US$67. Com o valor atual de US$551 por cada patinete, a Bird está torrando dinheiro para entrar no mercado. Mesmo com o valor desejado de US$360 por aparelho, ainda é um prejuízo colossal.

Entretanto, entram também em cena, além do custo inicial de cada unidade, as taxas municipais obrigatórias de licenciamento, o aluguel do espaço público para estações de docking, cujos valores vão para os cofres da Prefeitura, quer o serviço tenha demanda ou não.

Os números da Bird em Lousville podem não refletir necessariamente a realidade em outras praças, com outras empresas, mas, certamente, servem de alerta para uma modalidade que precisa superar a mancha de “febre de verão”. Startups anteriores estiveram nesse mesmo ponto de crescimento antes e hoje são gigantes do setor. Tudo indica que não será diferente agora: as rivais  a Lime e a Bird estão avaliadas atualmente em US$ 1,1 bilhão (R$ 4,26 bilhões) e US$ 2 bilhões (R$ 7,75 bilhões), respectivamente.

A GGV Capital injetou 63 milhões de dólares na Yellow no ano passado. O nome pode passar despercebido para o cidadão comum, mas a investidora é um dos pilares da  chinesa Didi Chuxing, que comprou a 99. Para Hans Tung, da GGV Capital, “acreditamos que haja uma nova economia emergindo na América Latina”. Esse investimento é o primeiro da empresa diretamente na região.

Essa “nova economia”, ou “novíssima economia”, melhor dizendo, já está atraindo a atenção dos antigos senhorios da revolução urbana. Tanto Uber quanto Lyft estão pleiteando entrar no mercado de patinetes elétricos em San Francisco, em parceria regulamentada com a Prefeitura.

Para todos os fins, com lucro ou prejuízo, as ruas das grandes cidades estão prestes a sofrer uma nova disruptura.