Bate aquela fominha no final de noite. Você abre a geladeira e só tem água gelada. O armário só tem um pacote de arroz que foi aberto em 2019, preso com um pregador de roupa. E agora? Você puxa o celular, escolhe um restaurante, escolhe aquele sandubão maroto e minutos depois o problema está resolvido. Facilidades da tecnologia e da nova economia digital.
Ou será que não? Entre o pedido e a entrega, entre a fome e a vontade de comer, existe todo um ecossistema que pode estar mais próximo do colapso do que se imagina. Em um futuro não muito distante, existe a possibilidade que você volte a cozinhar em casa ou dependa de ir na rua caçar seu próprio lanche, como nossos avós faziam.
Enquanto os entregadores se organizam e cruzam os braços para reivindicar melhores condições de trabalho, um levantamento realizado pela PBS norte-americana descobriu uma realidade inesperada: não tem ninguém lucrando com os aplicativos de entrega.
Ironicamente, essa constatação surge em um momento que deveria favorecer o setor. Com uma pandemia se alastrando globalmente, em muitas cidades a frequência física em restaurantes foi reduzida a zero. Com pessoas confinadas em quarentena, o consumo de refeições externas disparou. Entretanto, a conta não está fechando para nenhuma das partes envolvidas e uma crise se aproxima.
Ruim para os entregadores?
A chamada “gig economy” tem um nome elegante, um jargão atraente que disfarça sua real tradução: “economia do bico”. Vão-se as garantias trabalhistas do século XX, entra a nova relação patrão-empregado do século XXI, que coloca esse último como um empreendedor, mesmo que tudo que ele tenha seja uma bicicleta e um aparelho celular. Todos os custos da operação incidem sobre o entregador, assim como os riscos, enquanto o faturamento não é tão promissor quanto parecia inicialmente.
Mesmo com a pandemia, o faturamento da categoria despencou, com queda maciça de tarifas oferecidas pelas empresas. De acordo com um levantamento realizado pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho), em quatro Estados brasileiros, 60,3% dos entregadores relataram uma queda na remuneração.
“Só queremos ganhar melhor para almoçar dignamente, trocar peça da moto e não andar precarizado. O novo normal não precisa ser só a mascara e álcool gel, é a forma nova de trabalhar. Só queremos ser remunerados”. Gringo, presidente da Amabr (Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil). Fonte.
Ruim para os restaurantes?
A chegada dos aplicativos de entrega prometia encerrar a necessidade de se manter entregadores na folha de pagamento de grandes restaurantes. Para pequenos negócios, era a promessa de finalmente conseguir atender a uma clientela fora de sua área próxima de atuação e aumentar o faturamento. Entretanto, para muitos, o sonho virou pesadelo. A disruptura no modelo de negócios alavancou poucos, enterrou outros e produziu o bizarro fenômeno das “dark kitchens“, com sua a sombria perspectiva de que as empresas de entrega terminariam por dominar toda a linha de produção.
O relacionamento entre restaurantes e aplicativos de entrega cresceu tensa. A pandemia poderia ser uma escapatória em uma era de isolamento social, mas serviu apenas para agravar o atrito. Se foram reduzidas as taxas pagas aos entregadores, houve aumento na tarifa paga pelos restaurantes ao serviço. Um levantamento realizado pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes constatou que 80% dos donos de restaurantes não estão satisfeitos com os aplicativos.
“Agora faturo apenas 20% do que faturava antes. Com mais taxas, recebemos menos e vai ficando mais difícil de manter os negócios. Infelizmente, não temos muitas alternativas”. Dono de restaurante que preferiu não se identificar. Fonte.
Ruim para os usuários?
Para os usuários, o sistema de entrega de refeições por aplicativo também deveria ser um sonho digital: a praticidade de se ter um amplo cardápio ao alcance dos dedos, com alguns minutos de espera e preços competitivos. Mais uma vez, a realidade a longo prazo acabou se tornando diferente: no ano passado, esse tipo de serviço liderava o ranking de reclamações no Procon. Em 2020, o prognóstico não melhorou muito: cobranças indevidas, atrasos, taxas elevadas e até falhas de segurança que expuseram dados de clientes.
Ainda assim, ruim com eles, pior sem eles. A instalação de aplicativos de entrega subiu 700% em São Paulo durante a pandemia e a estimativa é que tenha havido um aumento de 30% no volume de compras. Não que a relação entre o usuário e o serviço tenha melhorado, em um momento em que entregadores e restaurantes estão saturados pela demanda, por valores extorsivos e outros problemas. O resultado: um aumento de 124% nas reclamações de usuários.
“Temos várias reclamações contra empresas de delivery que não cumprem o prazo de entrega; casos que o produto nem chega, em virtude da alta demanda desorganizada não entrega o produto para os consumidores; e casos que o produto chega totalmente desfigurado para o consumidor, uma prática totalmente abusiva”. Marcelo Salomão, superintendente do Procon-MS. Fonte.
Ruim para os investidores?
A grande surpresa da reportagem da PBS é o fato dos investidores também estarem operando no vermelho. Tecnicamente, nenhum serviço de entrega de refeições está gerando lucro. São milhões de dólares investidos em uma infraestrutura que teria o potencial de dominar o mercado, em um futuro que ninguém sabe quando chega.
Essa mentalidade não é novidade no mundo da tecnologia da informação. Foi essa visão que produziu a famigerada “bolha da internet” no final dos anos 90, mas também foi a mesma prática que levou Jeff Bezos ao topo da lista dos mais ricos do mundo, após anos sofrendo prejuízos com o começo da Amazon. Entretanto, para o mercado, os exemplos de sucesso seguem sendo o único farol e os grandes fracassos são esquecidos e varridos para debaixo do tapete da história.
Enquanto se aguarda que essa roleta pare de girar, startups de delivery seguem surgindo ou se fundindo, disputando de forma predatória um ecossistema que parece não ser do interesse de ninguém. Há um risco real de que esse castelo desabe a qualquer momento, tão logo os investidores se cansem de esperar ou levem seu capital para outros horizontes mais promissores.
O resultado pode ser catastrófico. A economia já sofreu a disruptura e voltar agora tem fortes chances de gerar problemas ainda maiores, com um fechamento em cascata de restaurantes que existem há décadas. Entre a frigideira da pandemia e o fogo dos serviços de aplicativos, não há para onde pular.
“Eu vou funcionar como? Quem vai pagar meus funcionários? Ninguém odeia mais os aplicativos de entrega do que eu, que sou dono de negócio e tenho que entregar 20 a 25% direto para eles, automático. Quando vi uma campanha nas redes sociais pedindo para deletar os aplicativos de entrega, pensei: ‘Tá, vou chegar na minha cozinha e dizer pra todo mundo se virar, porque a partir de amanhã, usar iFood é muito injusto’. O iFood, infelizmente, é a única saída para muita gente”. Rodrigo Levino, sócio proprietário do Jesuíno Brilhante — restaurante especializado na culinária do Rio Grande do Norte, em São Paulo. Fonte.